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Canibalismo é mais comum do que se pensava, tanto entre homens como entre animais

Drew Barrymore é Sheila, que se alimenta de carne humana, em Santa Clarita Diet - Divulgação
Drew Barrymore é Sheila, que se alimenta de carne humana, em Santa Clarita Diet Imagem: Divulgação

Bill Schutt

18/02/2017 04h00

Às vezes, dizemos que "dois bicudos não se beijam", e isso é verdadeiro para muitas galinhas e outras aves. A bicada é um comportamento normal em um bando, usada por pássaros dominantes (ou “déspotas”) como maneira de fazer com que os subordinados se lembrem de sua posição social mais baixa.

No entanto, a prática se torna horrível quando milhares de aves são colocadas grudadas asa a asa. Então, as que estão bem abaixo na hierarquia são bicadas até a morte – e comidas. À medida que fazendas de frangos e ovos aumentaram de tamanho nos anos 1920 e 1930, o ato de bicar as penas e o canibalismo, conhecido no negócio como “pick out”, se tornaram ameaças sérias.

Em 1939, Joseph Haas, fundador da National Band and Tag Co., desenvolveu um método moderno para lidar com os canibais engaiolados: mini-óculos de sol equipados com lentes vermelhas de celuloide montadas em armações de alumínio articulado. Os donos de aviários foram informados de que fazer com que as galinhas vissem o mundo por meio de lentes cor-de-rosa “amansaria as aves mais duronas”.

Até recentemente, a ideia corrente entre os cientistas era de que o canibalismo acontecia apenas em poucas espécies na natureza, como as aranhas viúvas-negras e os louva-deuses. O canibalismo, achavam os pesquisadores, era um comportamento aberrante que resultava da falta de formas alternativas de nutrição ou de estresse associado a condições de cativeiro.

Mas, ao longo de décadas, foram reunidas evidências para uma visão alternativa. O canibalismo, ao que tudo indica, acontece em centenas de espécies, talvez milhares. O comportamento varia em frequência entre os principais grupos de animais – não existe em alguns e é comum em outros. Varia de espécie para espécie e mesmo dentro da mesma espécie, dependendo das condições ambientais locais.

Crocodilo do Nilo é fotografado comento um filhote da mesma espécie - Reprodução/Daily Mail - Reprodução/Daily Mail
Crocodilo do Nilo é fotografado comento um filhote da mesma espécie
Imagem: Reprodução/Daily Mail

Por que existe canibalismo?

Também é importante notar que o comportamento possui várias funções, dependendo do canibal, e algumas delas não têm nada a ver com estresse ou condições de cativeiro. Há inclusive alguns casos em que o indivíduo canibalizado recebe um benefício.

Antes de sua morte em um acidente de barco em 1980, Gary Polis, ecologista da Universidade da Califórnia, Davis, produziu uma lista de regras relacionadas ao canibalismo entre os invertebrados. Animais imaturos são consumidos com mais frequência do que os adultos, descobriu ele, e muitas espécies reconhecem indivíduos de sua própria espécie (principalmente ovos e estágios imaturos) apenas como comida.

Ele notou que o canibalismo era mais comum em fêmeas do que em machos e que, à medida que diminuía a disponibilidade de formas alternativas de nutrição, os incidentes de canibalismo aumentavam. Por fim, em uma dada população, o canibalismo em geral é relacionado diretamente com o grau de superlotação.

Na década de 1990, as generalizações de Polis haviam sido observadas entre grupos de animais muito divergentes, não apenas invertebrados. Os benefícios de se consumir alguém da própria espécie, ao que parece, podem superar os custos.

Esse preço, no entanto, pode ser substancial. Os canibais que consomem seus próprios parentes removem aqueles genes da população, reduzindo o que é chamado pelos cientistas de aptidão inclusiva. Mas a desvantagem mais significativa parece ser a maior chance de adquirir parasitas ou agentes patogênicos particularmente nocivos à espécie.

Cérebro servido como comida - Getty Images - Getty Images
Imagem: Getty Images

No exemplo mais famoso, o povo de Fore, na Nova Guiné, chegou quase à extinção por causa de seu consumo ritualístico de cérebros e outros tecidos cortados dos corpos de parentes falecidos.

Muitos morreram de kuru (doença de Creutzfeldt-Jakob), uma condição neurodegenerativa parecida com a doença da vaca louca, e seu tecido continha o patógeno, o que espalhava ainda mais a doença.

Menu das Crianças

À medida que uma nova geração de pesquisadores somava descobertas ao trabalho de cientistas como Polis e Laurel Fox, biólogo evolucionário da Universidade da Califórnia, Santa Cruz, o canibalismo na natureza começou a parecer quase normal.

Agora sabemos que uma quantidade significativa de canibalismo acontece entre os moluscos, os insetos e os aracnídeos. Além disso, milhares de invertebrados aquáticos, como vieiras e corais, botam pequenos ovos e larvas que são frequentemente uma importante fonte de alimentação para os adultos que se alimentam por filtragem – em si uma forma de canibalismo indiscriminado.

Em muitas espécies de peixes, os adultos podem ser um milhão de vezes maiores do que seus próprios ovos. Ovos de peixe, larvas e girinos existem em grande número, são pequenos e têm alto valor nutricional.

Isso faz com que sejam uma fonte não ameaçadora e facilmente coletável de alimentos. É por isso que ictiólogos consideram a ausência de canibalismo em peixes, e não sua presença, como sendo o caso excepcional.

Embora tanto ovos fertilizados como não fertilizados sejam provavelmente comidos por milhares de espécies, a prática de consumir ovos da mesma espécie levou a uma abordagem interessante do “menu para crianças”.

Ovos - Reprodução/neoperceptions - Reprodução/neoperceptions
Imagem: Reprodução/neoperceptions

Os chamados ovos tróficos, produzidos por alguns tipos de aranhas, besouros e caracóis, funcionam somente como comida e frequentemente superam em muito os ovos fertilizados em uma ninhada.

Mas uma espécie de aranha, a Amaurobius ferox, leva o conceito de refeições pré-prontas um passo adiante. Um dia depois do nascimento dos filhotes, as novas mamães põem uma ninhada de ovos trópicos, que são doados a seus bebês famintos.

Isso os mantém satisfeitos pelos três dias seguintes, depois do que, os filhotes estão prontos para seu próximo estágio de desenvolvimento.

Após sua primeira muda, os filhotes dessa aranha ficam muito grandes para serem cuidados pelas mães, embora ainda precisem muito de alimentos adicionais. Em um ato de sacrifício materno, ela chama os bebês batendo na teia e oferece seu próprio corpo.

Os filhotes vorazes pulam sobre ela e a comem viva.

Entre tubarões-cinza (Carcharias taurus), os bebês que praticam o canibalismo nem nasceram ainda.

Os jovens tubarões, como os tubarões-martelo lisos (Sphyrna zygaena) e os tubarões azuis (Prionace glauca), desenvolvem-se dentro dos ovidutos das fêmeas, uma estratégia conhecida por viviparidade histotrófica.

Os cientistas que primeiro estudaram os embriões de tubarões-cinza em 1948 perceberam que eram bem desenvolvidos anatomicamente, com a boca cheia de dentes afiados – um ponto (ou vários) enfatizado quando um pesquisador foi mordido na mão enquanto examinava o oviduto de um espécime grávido.

Estranhamente, esses embriões tardios também tinham as barrigas inchadas, o que a princípio se pensou ser vesículas vitelinas, uma maneira de armazenar alimento. Isso deixou os pesquisadores intrigados, já que a maior parte dessa substância rica em nutrientes deveria ter sido consumida nessa fase tardia do desenvolvimento.

Uma investigação mais profunda mostrou que as saliências abdominais não eram sacos vitelinos – eram estômagos cheios de pequenos fetos de tubarão. Esses embriões haviam sido vítimas da rivalidade entre irmãos, uma forma de canibalismo intrauterina conhecida como adelfofagia (do grego antigo para “alimentar-se do irmão”) – ou canibalismo entre irmãos.

Esse comportamento é possível porque o oviduto do tubarão-cinza contém embriões em diferentes estágios de desenvolvimento (uma característica que também evoluiu nas aves). Assim que o embrião maior acaba com seu suprimento de alimento, começa a consumir os ovos.

E, quando os ovos acabam, o voraz feto de tubarão passa a consumir os irmãos mais novos. No final, apenas dois filhotes se salvam, um em cada oviduto.

O mesmo acontece com a “estratégia do bote salva-vidas” vista em aves como abutres e garças. Nesse caso, o canibalismo é frequentemente o resultado de uma eclosão assíncrona: dois ovos são postos, mas um nasce vários dias antes do outro. O que nasceu primeiro usa seu tamanho extra para ganhar a luta pelo alimento de seu irmão ou irmã mais novo.

Quando os pais não conseguem fornecer alimentos suficientes, o mais velho pode matar e consumir o irmão mais novo. Nos períodos de estresse, essa é uma maneira eficiente de produzir filhotes bem nutridos – embora em menor número.

Exemplos de canibalismo entre os animais são tão numerosos quanto interessantes, das larvas de sapo-castanho que comem seus próprios companheiros de ninhada a anfíbios sem pernas, chamados apodas, cujos filhotes descascam e consomem a pele de suas mães. E acontecem entre os mamíferos também.

Ursos polares consomem outros ursos polares e faziam isso muito antes das mudanças climáticas impactarem suas práticas de caça. E o leão, depois de se tornar o rei da matilha, come os filhotes nascidos de outros machos. São dois exemplos de heterocanibalismo – alimentar-se de não parentes.

Nos leões, os machos que chegam querem acabar com o investimento das mães em filhotes que não são seus. Mais importante ainda, a leoa com filhotes não vai entrar no cio por um ano e meio depois de dar a luz.

Mas, como foi visto em outros mamíferos, como ursos, a leoa que perde os filhotes se torna sexualmente receptiva quase que de imediato.

Não é apenas para os animais

Existem casos em que, como no mundo animal, o canibalismo entre humanos faz sentido? E, se a resposta for sim, esse comportamento pode ressurgir no futuro? O canibalismo pode ser horrível e repugnante para nossas sensibilidades atuais, mas tem sido amplamente praticado por várias razões.

O canibalismo funerário foi praticado por grupos como os Fore da Nova Guiné e os Wari’ do Brasil. Esses povos indígenas ficavam tão mortificados com a ideia de enterrar seus mortos quanto os missionários e antropólogos recém-chegados com o fato de que eles consumiam os entes queridos.

De reis a plebeus, os europeus também comiam rotineiramente sangue, ossos, pele, tripas e partes do corpo humano. E faziam isso sem culpa, como uma forma de canibalismo medicinal. Praticaram por centenas de anos e então nos fizeram acreditar que nunca aconteceu.

Ao longo de sua história, as partes do corpo eram ingredientes tão importantes no canibalismo culinário chinês que o historiador e autor Key Ray Chong dedicou um capítulo de 13 páginas de seu livro “Cannibalism in China” aos “Métodos de Cozinhar a Carne Humana”.

Banquete real - Reprodução/Daily Mail - Reprodução/Daily Mail
Imagem: Reprodução/Daily Mail

Ao invés de uma ração de emergência consumida como último recurso, há vários relatos de que pratos exóticos com base humana eram preparados para a realeza e para cidadãos das altas classes chinesas.

Canibalismo humano também tem sido um instrumento de terror. A prática foi usada para incutir o horror e o medo intenso em dissidentes durante a Revolução Cultural da China, e soldados japoneses canibalizaram prisioneiros durante a Segunda Guerra Mundial (um destino do qual o presidente George H. W. Bush escapou por pouco depois que seu avião foi abatido).

Apesar de a piedade filial ser encarada como uma virtude confucionista altamente conceituada, também é a base para um ato extremo de autossacrifício relacionado ao canibalismo. Segundo Chong, da China antiga até o século XIX, as pessoas forneciam partes de seus próprios corpos (coxas e braços eram os mais usados) para o consumo e benefício médico de seus parentes mais velhos.

Hiroshima - Hiroshima Peace Memorial Museum/Reuters - Hiroshima Peace Memorial Museum/Reuters
Imagem: Hiroshima Peace Memorial Museum/Reuters

E há as narrativas mais familiares de canibalismo humano nascido da fome. Por toda a história e em muitas culturas, quando as pessoas precisam encarar condições extremamente estressantes como cercos (por exemplo, Stalingrado durante a Segunda Guerra Mundial), fomes (China) ou a impossibilidade de sair de onde estão (como aconteceu com os pioneiros da Expedição Donner durante uma nevasca), muitos eventualmente consumiram os mortos – e mesmo seus parentes.

Em um procedimento que ficou conhecido pelos marinheiros como “o costume do mar”, aqueles que estavam à deriva sorteavam fios de palha. O marinheiro que tirasse o mais curto desistia da vida para que os outros pudessem comer.

No que talvez seja o caso mais famoso, em 1765 uma tempestade desmantelou o saveiro americano Peggy, deixando-o à deriva no meio do Oceano Atlântico com seu capitão, nove tripulantes e um único escravo.

Após consumir o gato do navio, os botões de seus uniformes e uma bomba de água de couro, e depois de o capitão se refugiar em sua cabine com uma pistola, a tripulação decidiu fazer um sorteio. O perdedor seria servido no jantar. Por uma coincidência incrível, o escravo tirou a palha mais curta.

Apesar de o homem implorar por sua vida, o capitão foi incapaz de evitar seu assassinato, escrevendo depois que, quando a tripulação estava pronta para cozinhar o corpo, um marinheiro se adiantou, arrancou o fígado do escravo e o comeu cru. Essa é a origem horrível do termo “estratégia do bote salva-vidas”, usado mais de dois séculos depois por ornitólogos para descrever o destino de filhotes desafortunados.

Como os cientistas acabaram descobrindo, fatores como superpopulação e falta de formas alternativas de nutrição são responsáveis pelo canibalismo entre os animais, e está claro que mesmo humanos modernos têm sido levados a esse comportamento em várias ocasiões. O que será, então, do futuro?

As populações estão crescendo. Os recursos estão diminuindo. Os desertos continuam aumentando. E as regras da sociedade que nos mantém unidos vêm se provando mais frágeis do que imaginamos. Talvez fosse sábio lembrar que o canibalismo humano, impensável hoje, não era tão incomum pouco tempo atrás.