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Sonho ou pesadelo? Cientistas desenvolvem dispositivo capaz de manipular a memória

Cientistas descobrem que pulsos elétricos ajudam indivíduos no armazenamento da memória. Uma descoberta que pode ser assustadora - Pawel Mildner / The New York Times
Cientistas descobrem que pulsos elétricos ajudam indivíduos no armazenamento da memória. Uma descoberta que pode ser assustadora Imagem: Pawel Mildner / The New York Times

Benedict Carey

19/02/2018 18h50

Uma boa memória é questão de sobrevivência, independência e, acima de tudo, identidade.

A memória humana é o fantasma da medicina neurológica, uma rede ampla em mudança contínua, com comunicação multidimensional entre as células, que permite saber qual é a capital do Kentucky e reproduzir as emoções do primeiro amor.

A notícia divulgada na última semana de que os cientistas desenvolveram um implante cerebral que pode aumentar a memória --uma "prótese cognitiva", no jargão médico-- pode ser espantosa até mesmo para os céticos.

Certamente, os desenvolvedores de aplicativos já estão pensando em outro conjunto de exercícios para o cérebro tendo em conta essa novidade da medicina. E os roteiristas que criam personagens assassinos com amnésia terão algum apoio na realidade quando tentarem vender suas histórias.

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Os cientistas estão conversando sobre a comercialização da tecnologia, e as pessoas que sofrem perdas severas de memória, e suas famílias, provavelmente têm alguma esperança, por menor que seja. Essas coisas levam tempo, e há muitas incertezas.

Mas para a turma do "40 são os novos 30" e os mais velhos, a notícia de um avanço da memória cai em uma categoria diferente.

O que realmente significa os cientistas entenderem a biologia da memória a ponto de manipulá-la? Qual reação é apropriada: a dos futuristas ou a dos ranzinzas?

A única resposta nesse momento é: as duas.

Os desenvolvedores do novo implante, liderados por cientistas da Universidade Thomas Jefferson e da Estadual da Pensilvânia, se basearam em décadas de decodificação de sinais do cérebro, usando as mais avançadas técnicas de aprendizado de máquina, um subcampo da inteligência artificial.

O implante é constituído de uma gama de eletrodos profundamente inseridos no cérebro que monitora a atividade elétrica e, como um marca-passo, envia um impulso elétrico apenas quando necessário --quando o cérebro fica lento ao tentar armazenar novas informações.

Quando o cérebro está funcionando bem, o aparato não faz nada.

"Todos nós temos dias bons e ruins, dias em que estamos mais ou menos afiados. Descobrimos que dar uma mãozinha ao sistema quando ele está em marcha lenta pode de fato acelerá-lo"

É o que afirma Michael Kahana, professor de Psicologia na Universidade da Pensilvânia e principal autor do estudo.

Se esse sistema, quando for refinado, conseguir ajudar pessoas com deficiências extremas, poderá melhorar significativamente suas vidas (assim esperam as seguradoras). Um idoso com demência grave poderia ter mais anos de independência. Um veterano de guerra com um trauma cerebral pode voltar a ter um cérebro assertivo o suficiente para encontrar um trabalho decente ou construir uma carreira.

Para todos os outros, a descoberta central por trás do dispositivo --que pode melhorar um cérebro mais lento-- já é bem familiar. Os humanos têm feito isso deliberadamente, e desde sempre: com cafeína, nicotina, medicamentos como ritalina, ou de forma mais saudável, com uma corrida intensa no parque.

"Há boas evidências de que coisas como a nicotina e exercícios aeróbicos podem melhorar aspectos da atenção. Um estímulo pode ativar alguns dos mesmos sistemas, só que de maneira mais direta e precisa", disse Zach Hambrick, professor de Psicologia na Universidade Estadual de Michigan.

Memória - iStock - iStock
Imagem: iStock
Atenção seletiva

Uma habilidade que as pessoas com memória extraordinária têm em comum é o que chamamos de atenção seletiva, ou "controle de atenção". Um jeito comum de medi-la é o teste Stroop, no qual as pessoas veem palavras exibidas em um flash e tem que dizer qual a cor em que apareceram.

A resposta é quase instantânea quando a cor e a palavra são a mesma --"azul" aparecendo em azul-- mas mais lenta quando não combinam, como "azul" escrito em vermelho.

Homens e mulheres que disputam competições de memória tem alta pontuação nesses testes até por volta dos 30 anos, quando a capacidade começa a decair.

Tal habilidade é, em parte, hereditária, mas psicólogos afirmam que quase todo mundo pode aumentar a capacidade nata usando as mesmas técnicas dos campeões de memória: organizar mentalmente novos nomes, fatos ou palavras em um ambiente muito familiar, como no metrô ou no quarto onde passaram a infância.

Em um estudo contínuo, pesquisadores da Universidade de Washington, em St. Louis, treinaram um grupo voluntário formado por 50 idosos para que memorizassem uma lista de palavras usando imagens de locais --o chamado palácio da memória.

"Uma mulher nos seus 60 anos chegou a lembrar de mais de 100 palavras na ordem correta", disse David Balota, que colaborou com o estudo. "Outros se saíram bem, lembrando-se de mais de 50 ou 60 palavras."

E tudo sem cirurgia ou ritalina.

Mas havia um truque. "Aquela habilidade não se refletia em nenhum melhoramento da cognição geral, como concentração, velocidade de processamento ou armazenamento de novas informações sem o uso da técnica", disse Balota.

Resumindo, aumentar a capacidade de memorizar listas ou fatos, seja com o uso de um implante elétrico no cérebro ou com um treinamento baseado em imagens, pode não significar nada na qualidade de vida das pessoas cuja memória funciona normalmente.

São nas perdas graves que a equação muda.

Um aparelho que corrige em parte os danos pode manter detalhes cruciais registrados firmemente na memória --quem chamar em caso de emergência, como usar o telefone, e até se movimentar pelo banheiro. Por enquanto, é aí que um implante no cérebro é mais relevante.

Nos próximos anos, os cientistas devem fazer dessa nova tecnologia uma forma de recuperar a memória, ao invés de ser apenas uma ajuda no armazenamento.

"Achamos que há mais variações na recuperação do que no armazenamento", disse Kahana, com relação ao potencial para melhorar o desempenho. E, quando isso acontecer, tudo pode mudar.

Dar às pessoas com sérios problemas uma forma de armazenar os aspectos cruciais da vida cotidiana seria certamente um avanço médico.

Mas dar a eles, e a outros, um alcance mais vívido e profundo no vasto universo que já conhecem é um feito --e há anjos e demônios enterrados ali, não apenas nomes e fatos.

Isso será o roteiro de um filme na vida real, ao qual todos devemos assistir com cuidado.