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Evolução: Como os dentes se tornaram presas, e as presas, desvantagens

picture-alliance/blickwinkel/P. Espeel
Imagem: picture-alliance/blickwinkel/P. Espeel

18/09/2018 04h01

Estamos voando em um avião Bat Hawk, que pode ter recebido seu nome de uma ave de rapina que se alimenta de morcegos, mas se parece mais com uma libélula gigante verde-limão, e meu cabelo, graças ao cockpit aberto, ficou completamente despenteado.

Passando sobre planícies inundadas, da cor de feltro velho de uma mesa de bilhar, e de áreas enlameadas divididas como quebra-cabeças, mergulhamos em direção à copa das árvores e vimos rebanhos de gazelas se dispersando, impacientes.

Estamos procurando os elefantes sem presas de Gorongosa, que, naturalmente, não ostentam seu magnífico marfim, pelo qual seriam tragicamente caçados por ricos colecionadores de todo o mundo.

Eles podem ser encontrados em pequenos números por toda a África, mas Gorongosa é famoso por abrigar uma população considerável, o legado de uma violenta guerra civil de 15 anos. Os indivíduos com presas foram abatidos por causa do marfim a um ritmo angustiante, por isso os raros residentes do parque que não as têm ganharam uma súbita vantagem darwiniana.

Hoje, cerca de um quarto dos 700 ou mais espécimes do parque não possuem presas, senda todas fêmeas, e estou determinada a avistar pelo menos uma. No entanto, uma semana de buscas por terra revelou-se infrutífera. Agora, circulamos em um avião, e ainda nada. Como criaturas tão grandes podem desaparecer assim?

"Lá!", gritou triunfalmente Alfredo Matavele, o piloto, apontando para um aglomerado de árvores. "E lá!", apontando para um fosso d'água. "E ali e ali, viu?" perguntou.

Ah, sim, estou vendo. Dezenas, em grupos grandes e pequenos, orelhas abanando como bandeiras, trombas balançando com lentidão e, decididamente, muitas sem marfim. Eu finalmente as encontrei, minhas irmãs desdentadas.

Outras pessoas podem admirar os elefantes pela inteligência ou pela vida social complexa; sinto uma ligação com esse grupo mutante. Afinal de contas, aprendi que compartilhamos uma anomalia básica de desenvolvimento que pode muito bem ser encontrada nas mesmas falhas subjacentes de nosso DNA.

As presas dos elefantes são versões extragrandes dos incisivos laterais superiores – os dentes bem ao lado dos dois da frente, antes de chegar aos caninos. Esses elefantes simplesmente não têm os incisivos laterais.

Também não os tenho; aí está uma característica familiar. Os elefantes sem presas muitas vezes têm um parente semelhante. Minha filha e meu irmão caçula também não têm. Não admira que sempre tivemos problemas para arrancar a casca das árvores.

Os cientistas ainda não sabem a causa dessa diferença, mas fizeram um grande progresso no deciframento do programa genético de desenvolvimento dos dentes de mamíferos em geral ao descobrir que é um código antigo e amplamente compartilhado.

"O desenvolvimento dos dentes é algo que foi bem conservado durante a evolução", disse Irma Thesleff, bióloga de desenvolvimento da Universidade de Helsinki, na Finlândia. Ela descobriu que mutações associadas a anomalias dentárias em camundongos também aparecem em estudos genéticos de pessoas que apresentam ausência ou má formação de dentes.

"Os elefantes são tão semelhantes aos seres humanos quanto os ratos, por isso é bem possível que o mesmo gene ou genes estejam envolvidos em humanos e paquidermes", disse Thesleff.

Por exemplo, poderia ser um erro tipográfico no código genético de uma molécula de sinalização chamada wnt10a. "Esse é um dos genes mais comumente mutantes em seres humanos que não têm alguns dentes", disse Thesleff.

E, oh, nós desdentados estamos em toda parte. Estima-se que oito por cento da população não tenha um ou mais dos 32 dentes encontrados no conjunto adulto padrão, e esse número sobe para cerca de 30 por cento se você incluir a ausência natural dos quatro dentes do siso, que muitas pessoas precisam arrancar de qualquer maneira.

Acredita-se que a falta de incisivos laterais seja a segunda forma mais comum de agenesia dentária. Um estudo arqueológico de uma comunidade agrícola de nove mil anos de idade em Basta, na Jordânia, descobriu a ausência deles em 36 por cento dos habitantes. Para os pesquisadores, a taxa elevada é evidência de consanguinidade.

A ocorrência normal dessa característica fica entre 2 e 4 por cento, o que, coincidentemente ou não, é semelhante à dos elefantes africanos sem presas.

"Ainda mais comum em seres humanos do que a falta de incisivos laterais, é a ausência dos segundos pré-molares inferiores, os dentes com duas cúspides localizado na mandíbula inferior, ao lado dos molares de quatro cúspides", explica Ariadne Letra, professora associada da Faculdade de Odontologia da Universidade do Texas, em Houston.

(Durante minha pesquisa para esta história, descobri que meu marido nasceu sem os segundos pré-molares, então acho que sou grata pelo fato de minha filha ter dentes.)

Através de estudos de animais, os cientistas descobriram que os dentes podem crescer em um isolamento meio sinistro em relação a outros sistemas do corpo, como se ansiassem pela carreira de dentadura em uma festa de Dia das Bruxas. Isaac Salazar-Ciudad, biólogo teórico que estuda o desenvolvimento dentário na Universidade de Helsinki, explicou que se você remover parte da boca primordial de um embrião de rato e a cultivar em um prato, ela vai desenvolver um conjunto de dentes de aparência normal.

Embora o programa genético básico seja amplamente compartilhado, a formação dos dentes também é flexível e suscetível a influências evolucionárias.

Os dentes se desenvolvem através da interação de dois tipos de tecido embrionário, o epitelial e o mesenquimal, que no início da gestação – por volta do 28º dia em seres humanos – começam a se dobrar um no outro, como origami, para formar uma série de "brotos" grandes e pequenos. Esses podem então assumir a forma de caninos afiados ou incisivos para cortar a carne, ou achatados e esculpidos em molares, com diferentes números de cúspides, para a mastigação de plantas fibrosas.

Ilustração 3D da dentição humana - Getty Images - Getty Images
Ilustração 3D da dentição humana
Imagem: Getty Images

O núcleo do dente, a polpa, contém os vasos sanguíneos e as fibras nervosas, enquanto a massa consiste de um material parecido com o osso, chamado dentina. O revestimento exterior de esmalte de fosfato de cálcio é a substância mais dura do corpo, razão pela qual os dentes de animais representam a maior parte do registro fóssil.

E quando alongados em estruturas que ultrapassam o limite da boca e crescem durante toda a vida, os dentes se tornam presas, usadas para cavar, lutar, carregar, perfurar, ameaçar.

"A diversidade de formas que os dentes podem assumir, combinada com a sua dureza mineral, pode ser o motivo pelo qual passaram a ser usados como presas e tantas outras tarefas", disse Salazar-Ciudad.

Na maioria dos casos, as presas são caninos, curvando-se para o lado e para cima em javalis e porcos selvagens, ou para baixo em morsas. Nos narvais, os unicórnios do Ártico, a presa é formada por um único canino superdesenvolvido que sai pelo lábio superior esquerdo do animal em uma ferida permanentemente aberta, que acaba hospedando pequenas criaturas parecidas com camarões que se alimentam da pele da baleia.

"O chifre do narval é, ao mesmo tempo, a única presa reta na natureza e a única em espiral", disse Martin Thomas Nweeia, especialista em narvais que leciona na Faculdade de Medicina Odontológica de Harvard.

Normalmente, as presas são dispositivos de múltiplos usos. Os javalis utilizam as suas ofensiva e defensivamente, para lutar entre si durante a época de acasalamento e para afugentar predadores muito maiores.

As das morsas são usadas como ganchos de luta, para sair da água e subir no gelo, e como arma contra ursos polares e em disputas sexuais – mas não, como comumente se acreditava, para buscar alimentos ou abrir ostras.

O propósito da presa do narval ainda é um assunto muito debatido. Alguns pesquisadores sugerem que sejam usadas para atordoar suas presas; Nweeia e seus colegas acreditam que seja uma espécie de órgão sensorial, para detectar mudanças na salinidade e na temperatura da água.

Os elefantes são os verdadeiros mestres da presa multiuso. Eles empregam seus incisivos poderosos na busca por sais e minerais, para quebrar galhos e chegar à folhagem, para descascar troncos de árvores – "Eles realmente gostam de comer a casca", disse Joyce Poole, diretora científica do Elephant Voices, um grupo de pesquisa e defesa que trabalha em Gorongosa –, retirar um filhote errante de uma poça de lama ou levantar um integrante da manada que esteja dormindo.

Eles coordenam as presas com a tromba e os pés para descascar árvores de acácia e amaciar gramíneas resistentes, e armazenam galhos frondosos em sua prateleira de marfim para consumo posteriormente.

Assim como as pessoas são canhotas ou destras, os elefantes têm uma presa favorita. "Se forem quebrar um galho com uma presa, usam sempre a mesma. Com o tempo, um sulco acaba se formando nela", disse Poole.

Do Bat Hawk, assisti dois grandes elefantes machos brigando, enganchando suas presas de marfim maciço, que podem pesar mais de 45 quilos cada, sete vezes o peso médio do de uma fêmea.

Porém, as propriedades biofísicas que fazem das presas ferramentas esplêndidas já provaram ser o infortúnio de seus proprietários: o ser humano há muito cobiça o marfim por sua beleza, maleabilidade e possíveis propriedades mágicas.

Acredita-se que a primeira aparição das presas de narval na Europa medieval tenha dado origem ao mito do unicórnio, e a um aumento na demanda das lanças em espiral de quase 3 metros de comprimento. Dizem que a rainha Elizabeth I pagou dez mil libras por uma delas, o que era então o preço de um castelo médio.

A busca pelo marfim das morsas pode muito bem ter contribuído para a formação da Groenlândia no século X, e levou à quase extinção de suas populações em torno da Noruega, da Islândia e em outras partes do Atlântico Norte.

Porém, o marfim dos elefantes é considerado o melhor do mundo, e esses animais foram mortos por muito tempo para fornecê-lo. Apesar dos esforços internacionais para banir o comércio de marfim, a demanda ainda impulsiona um negócio que rende pelo menos US$ 1 bilhão por ano.

A persistência da caça ao elefante levou os pesquisadores a se perguntar se os animais realmente precisavam dessa ferramenta, e se não se dariam melhor se o traço que determina sua ausência se espalhasse mais amplamente pelas populações africanas desses animais.

Shane Campbell-Staton, professor assistente de Ecologia e Biologia Evolutiva da Universidade da Califórnia em Los Angeles, e seus colegas começaram a comparar sistematicamente os elefantes com e sem presas de Gorongosa, buscando não só identificar os genes envolvidos na ausência delas, mas também para resolver padrões curiosos de herança.

Por que, por exemplo, quase todos os elefantes sem presas da África são fêmeas? Entre os asiáticos, muitos machos não apresentam a característica, e estudos recentes sugerem que eles se dão surpreendentemente bem no campo da batalha sexual quando enfrentam rivais com presas.

Campbell-Staton também examina outros efeitos da falta das presas.

"Sabemos que elas desempenham um papel importante na obtenção de alimentos. Então, se os indivíduos não têm essa ferramenta, usam o ambiente de forma diferente. Será que essas mudanças poderiam ter consequências para outros animais que dependem dos elefantes como engenheiros do ecossistema?"

Talvez. Mas, ao que parece, os elefantes sem presas de Gorongosa estão prosperando. "Estão em condições fantásticas. Este é um habitat muito bom para eles, e não há nenhuma indicação de que estejam sofrendo nutricionalmente", disse Poole.

Incisivos laterais: quem precisa deles? Melhor é manter os caçadores à distância.