Topo

A Cara da Democracia

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O Haiti é aqui

2017 - Defesa homenageia militares que participaram de Missão de Paz no Haiti - O Ministério da Defesa, em conjunto com a Marinha, o Exército e a Força Aérea Brasileira, homenageou os militares que atuaram ao longo de 13 anos na Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH). A solenidade foi realizada no Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, no Rio de Janeiro, com a presença do Ministro da Defesa, Raul Jungmann - Márcio Alves / Agência O Globo
2017 - Defesa homenageia militares que participaram de Missão de Paz no Haiti - O Ministério da Defesa, em conjunto com a Marinha, o Exército e a Força Aérea Brasileira, homenageou os militares que atuaram ao longo de 13 anos na Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH). A solenidade foi realizada no Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, no Rio de Janeiro, com a presença do Ministro da Defesa, Raul Jungmann Imagem: Márcio Alves / Agência O Globo

Colunista do UOL

27/05/2021 05h00

Leonardo Avritzer*

Desde 2018, quando o Brasil tomou conhecimento dos tuítes do general Villas Bôas e apareceram os primeiros pedidos de intervenção militar, muitas pessoas no país se perguntam o que explica essa trajetória não democrática das nossas Forças Armadas. Semana passada publiquei um artigo que recebeu uma resposta irada do general Augusto Heleno no Twitter (vide abaixo). Naquele texto, lancei uma explicação que também tem sido oferecida por outros analistas: as Forças Armadas brasileiras, que tiveram sua estrutura intocada na transição para a democracia, tiveram uma inflexão anti-direitos humanos durante a missão de paz no Haiti. Tentarei elaborar esse argumento.

1 - Twitter: https://twitter.com/gen_heleno/status/1394811011773906948 - Twitter: https://twitter.com/gen_heleno/status/1394811011773906948
Tuíte de General Heleno e repostas de Leonardo Avritzer
Imagem: Twitter: https://twitter.com/gen_heleno/status/1394811011773906948

Para aprofundar a explicação do artigo anterior, abordo aqui duas questões: o problema militar na transição para a democracia durante a elaboração da Constituição de 1988 e o problema militar tal como está colocado hoje, com alto número de militares povoando a esplanada dos ministérios e com o apoio que a intervenção militar goza em determinados setores da população.

O Brasil deixou não resolvido o problema da interferência dos militares na política durante sua transição para a democracia. De um lado, diferentemente dos nossos vizinhos do Cone Sul, o Brasil não puniu violações dos direitos humanos. A Argentina julgou os comandantes das juntas militares e o Chile julgou casos de violações de direitos humanos durante o período autoritário, especialmente depois da detenção do general Pinochet em Londres. O Brasil não apenas não julgou como manteve o texto de todas as constituições republicanas dando aos militares prerrogativas de intervenção para manter a ordem pública. O artigo 142 da Constituição de 1988 permite a intervenção para garantia da lei e da ordem. O resultado é uma visão bastante diferente dos militares nesses países, conforme aponta o gráfico abaixo, comparando o Brasil e a Argentina. Enquanto na Argentina a confiança nos militares ultrapassou os 40% da população durante um curto período, no Brasil ela em poucos momentos esteve abaixo dos 60% da população.

Gráfico 1: Confiança nas forças armadas (soma dos percentuais das respostas “confia muito” e “confia mais ou menos”).

2 - Fonte: Latinobarometro (1995-2017), A cara da Democracia no Brasil (2018), La Cara de la Democracia em Argentina (2018). - Fonte: Latinobarometro (1995-2017), A cara da Democracia no Brasil (2018), La Cara de la Democracia em Argentina (2018).
Confiança nas Forças Armadas
Imagem: Fonte: Latinobarometro (1995-2017), A cara da Democracia no Brasil (2018), La Cara de la Democracia em Argentina (2018).

A confiança nas Forças Armadas no Brasil se estabiliza desde o ano 2000 em aproximadamente 60% da população e encontra dois picos, o primeiro em 2006 e 2007 e o segundo entre 2011 e 2013. A popularidade das Forças Armadas, eu afirmaria, deriva diretamente do fato de que no Brasil elas não foram responsabilizadas por violações dos direitos humanos, ao contrário do que ocorreu na Argentina e no Chile, a partir de 2005, quando foi alterada a forma de composição da Suprema Corte. As Forças Armadas no Brasil, ao não serem responsabilizadas por violações de direitos humanos, acabaram adotando uma narrativa de continuidade nas suas ações desde 1964. Com um detalhe. Elas estenderam sua ação da área da política interna para o que concebem como uma guerra urbana.

Foi no contexto de Forças Armadas com prestígio renovado que a missão militar no Haiti foi proposta. Em 2001, o Haiti elegeu como presidente Jean-Bertrand Aristide, cuja trajetória democrática foi desafiada por um conjunto de forças paramilitares e acabou renunciando em 2004 em favor do presidente da Suprema Corte, Boniface Alexandre. O novo presidente pediu ajuda internacional às Nações Unidas. Ainda que o Brasil tenha uma longa tradição em missões de paz, poucas vezes o país forneceu a espinha dorsal de uma iniciativa desse perfil, tal como fez no Haiti.

Foi justamente aí que se iniciaram os problemas que o General Heleno nega. Em primeiro lugar, o Brasil tem uma doutrina limitada de operações militares de não guerra, como a missão do Haiti pode ser enquadrada, e uma definição ruim dessas operações como aquelas nas quais “as forças armadas usam o poder militar em tarefas que não envolvem o combate propriamente dito”, como mostra Victor Almeida Pereira em um artigo intitulado "A Minustah ante as características das operações de não guerra: implicações para o emprego da inteligência militar terrestre nas operações de paz" . O mesmo autor nos lembra que outros países, em especial os Estados Unidos, têm uma definição muito mais democrática de operações de não guerra, nas quais o papel das Forças Armadas é complementar a outros instrumentos do poder nacional.

Assim, é possível afirmar que o Brasil entrou em uma operação de paz com Forças Armadas sem uma concepção de direitos humanos e sem uma concepção do seu papel fora do campo de batalha. E o fez liderado por general entusiasta do Golpe de 1964, ajudante de ordens do então ministro do Exército Sylvio Frota, aquele que ensaiou um levante contra o general da abertura política, Ernesto Geisel.

Foi sob a doutrina limitada – mencionada no parágrafo anterior – que ocorreu a chamada operação “Punho de Ferro” no bairro de Cité Soleil, em Porto Príncipe. O relatório oficial falou em seis mortes. Uma investigação posterior pela agência de notícias Reuters revelou que foram disparados 22 mil tiros e que houve dezenas de mortes na operação que o general Heleno declarou um sucesso, uma vez que ela alcançou o objetivo de eliminar o chefe do tráfico conhecido como Dread Wilme. Grupos internacionais ligados aos direitos humanos consideraram a operação um massacre. O exército brasileiro jamais prestou contas sobre o episódio.

De volta ao Brasil, militares estiveram à frente de operações de segurança nas favelas do Rio na preparação para as Olimpíadas de 2016, e da intervenção no Rio de Janeiro, em 2018 - durante a qual ocorreu o assassinato da vereadora Marielle Franco e o crescimento do número de mortos em operações.

A operação no Haiti foi mencionada como modelo pelo presidente Bolsonaro em mais de uma ocasião e suas lideranças ocupam agora postos-chave no governo Bolsonaro, ao lado de colegas militares que assumiram cerca de 2500 cargos na administração pública - um número 33% maior do que no governo anterior. Sua eficiência ainda está por ser provada, tendo em vista inclusive a atuação do general da ativa Eduardo Pazuello, tido como especialista em logística, no ministério da Saúde durante a pandemia.

Assim, o Haiti não foi apenas uma missão fracassada do exército brasileiro. Ele foi um lugar no qual um exército sem responsabilidade com a defesa dos direitos humanos se tornou um agente da guerra urbana. Voltando do Haiti, as Forças Armadas brasileiras estavam prontas para duas missões: a participação em missões de segurança em solo nacional, que passaram a implicar em fortes violações de direitos humanos, e o tensionamento da própria ideia de democracia entre os seus quadros. O discurso do delegado Felipe Cury, diretor do Departamento Geral de Polícia Especializada, depois da operação no Jacarezinho, constitui a confirmação que a violação dos direitos humanos da população pobre é no Brasil um projeto político. Os militares encarregados da intervenção na segurança da cidade tiveram um papel central na configuração atual desse projeto, que não é novo. A novidade é o governo Federal, sob a batuta de Bolsonaro, ter se tornado um avalizador da relação entre exército não democrático e violência urbana.

* Leonardo Avritzer é professor do Departamento de Ciência Política da UFMG, coordenador do INCT - Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação e autor de diversos livros, entre eles o recente Política e antipolítica: a crise do governo Bolsonaro, Pêndulo da Democracia e Participatory Institutions in Democratic Brazil.