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Coronel ao repórter: "Não tenho que lhe dar satisfações"

O prédio da Auditoria Militar em SP hoje abriga o Memorial da Luta pela Justiça.  - Cristovão Bernardo/OABSP
O prédio da Auditoria Militar em SP hoje abriga o Memorial da Luta pela Justiça. Imagem: Cristovão Bernardo/OABSP

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Posso imaginar o que sentiu minha colega Marina Dias, correspondente da Folha em Washington, ao ser barrada da cobertura do jantar de Trump com Bolsonaro em Miami, no sábado.

No final de fevereiro de 1981, eu fui o único jornalista brasileiro vetado pelo então II Exército (hoje Comando Militar do Sudeste) para cobrir o julgamento dos líderes metalúrgicos do ABC na Auditoria Militar.

As credenciais foram distribuídas no quartel-general, cada jornalista foi recebendo a sua. Sem maiores explicações, fui informado que não tinham concedido a minha credencial. Além de mim, só os correspondentes estrangeiros não foram credenciados.

Por coincidência, eu também trabalhava como repórter da Folha naquela época.

Com a insolência e a cara de pau dos jovens (sim, eu também já fui jovem), fui perguntar ao chefe da 2ª Seção, o serviço secreto do Exército, responsável pelo credenciamento, o que estava acontecendo.

Sem prestar muita atenção no que eu lhe dizia, o coronel encarregado encerrou logo a conversa:

"Não tenho que lhe dar satisfações!"

Com seu jeitão pragmático, o chefe de reportagem da Folha, Adilson Laranjeira, pediu credencial para outro repórter e me mandou para o ABC para ver o que acontecia por lá no dia do julgamento, o que me rendeu um belo furo de reportagem.

Como os líderes metalúrgicos não compareceram à Auditoria Militar, e foram todos para a casa de Lula, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, fui o único repórter a entrar lá para contar como eles passaram o dia (relato este episódio no meu livro de memórias, "Do Golpe ao Planalto - Uma vida de repórter" (Companhia das Letras, 2006).

Mudam os regimes, mudam os governos, mudam os nomes das autoridades, mas não mudam os hábitos de quem está no poder, achando que pode tudo.

Marina Dias relata na Folha deste domingo que 15 jornalistas foram selecionados pelo Palácio do Planalto, e o nome dela não estava na lista dos que foram levados em duas vans para o resort de Donald Trump em Mar-a-Lago, Palm Beach.

Deram a Marina as mais diferentes explicações para o veto à presença da repórter da Folha no jantar, nenhuma convincente.

Uma funcionária da Secom chegou a lhe dizer que a Folha deveria estar no grupo e que tentaria reverter a situação, mas isso não aconteceu.

O cerimonial previa apenas um representante por veículo, mas a Record e a EBC puderam entrar com dois profissionais cada um.

Como aquele coronel do serviço secreto do Exército, poderiam simplesmente repetir a frase: "Não tenho que lhe dar satisfações!" Seria mais honesto.

Com critérios de síndico de condomínio particular na Barra da Tijuca, o governo simplesmente dividiu a imprensa entre amigos e inimigos.

A Folha divulgou uma nota na qual reitera que "o jornal continuará cobrindo esta administração de acordo com os padrões do jornalismo crítico e apartidário que o caracteriza e que praticou em relação a todos os governos".

O presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Paulo Jeronimo de Sousa, declarou que "mais uma vez, o presidente Bolsonaro mostra não ter a dimensão do cargo que ocupa. Age como se a Presidência da República fosse um brinquedo privado dele".

Além de estúpida, a decisão de barrar a repórter é inócua, apenas mais uma desfeita contra o jornal. Os leitores da Folha e do UOL não ficarão sem saber o que aconteceu no jantar dos dois presidentes articulado pelo empresário Mario Garnero, como ele revelou nas redes sociais.

No ano passado, durante uma coletiva em Dallas, a mesma Marina Dias já tinha sido vítima da grosseria presidencial, quando Bolsonaro lhe recomendou que "deveria entrar de novo em uma faculdade que preste e aprender a fazer bom jornalismo".

Pena que não exista nenhuma faculdade capaz de ensinar alguém a cultivar bons modos na Presidência da República.

Vida que segue

O governo e as mulheres

A propósito, recomendo a leitura dos artigos de duas jornalistas, Eleonora de Lucena ("Bolsonaro é inimigo das mulheres") e Patrícia Campos Mello ("No Brasil, ser mulher nos transforma em alvo de ataques"), publicados hoje, Dia Internacional da Mulher, na Folha e no UOL.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Uma versão anterior do texto informava equivocadamente o nome atual do Segundo Exército, em São Paulo. A informação foi corrigida.