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Balaio do Kotscho

Mordomias do governo, 45 anos depois do Estadão, já não causam escândalo

Jair Bolsonaro com ministros e parlamentares aliados em café da manhã no Alvorada: mesa tem que ser farta, e leite condensado não pode faltar - Marcos Corrêa/PR
Jair Bolsonaro com ministros e parlamentares aliados em café da manhã no Alvorada: mesa tem que ser farta, e leite condensado não pode faltar Imagem: Marcos Corrêa/PR

Colunista do UOL

26/01/2021 15h10

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Faz bastante tempo. Em 1976, o diretor de redação do velho Estadão (o jornal "O Estado de S. Paulo"), Fernando Pedreira, me passou um exemplar do "The New York Times" com uma extensa reportagem do correspondente do jornal em Moscou sobre a boa vida e os privilégios dos superfuncionários do governo comunista na hoje extinta União Soviética.

"Aqui no Brasil está acontecendo a mesma coisa, os mesmos abusos, talvez até pior. Levanta isso pra mim, não tem pressa", encarregou-me o chefe, como se fosse uma coisa simples, em plena ditadura militar.

Foi assim que nasceu a série de reportagens do Estadão sobre as mordomias no governo militar, que deu um escândalo danado quando foi publicada ao longo de uma semana, durante o governo de Ernesto Geisel, que chamou o diretor responsável do jornal, Júlio Mesquita Neto, a Brasília.

Não era para menos. Tratava-se da primeira matéria sobre os intestinos do regime, assim que os militares tiraram a censura prévia do jornal, um amplo levantamento que contou com a colaboração da enorme rede de sucursais e correspondentes do Estadão, criada e dirigida pelo brilhante jornalista Raul Martins Bastos.

"Mordomia" era a rubrica do Diário Oficial com a lista de compras de comes, bebes e outras benfeitorias para os palácios do governo, o ponto de partida para a apuração da matéria.

Me lembrei disso hoje ao receber um meme do meu sobrinho Gustavo Kotscho com o título "Farra do Supermercado", mostrando algumas despesas de mordomias do atual governo e perguntei para ele de onde tinha tirado aquilo. Logo depois, meu irmão, o repórter fotográfico Ronaldo Kotscho, me mandou o link com a lista completa. A família trabalha unida.

Está tudo numa preciosa reportagem de Rafaela Lima, do portal Metrópoles ("Mais de R$ 1,8 bilhão em compras: carrinho do governo federal tem de sagu a chicletes"), que levantou os dados no "Portal de Compras atualizado pelo Ministério da Economia", a versão moderna do velho Diário Oficial, onde garimpei as primeiras informações para a série do Estadão, exatos 45 anos atrás.

Só que, desta vez, não houve escândalo nenhum. Como de resto acontece com tudo neste governo, também as mordomias foram normalizadas, e ninguém se choca mais com alguns gastos, digamos, extravagantes, que registram um aumento de 20% em relação a 2019 nas despesas com alimentação de todos os órgãos do Executivo.

Alguns exemplos:

* R$ 2,2 milhões em chicletes

* R$ 2,2 milhões em uva-passa

* R$ 14 milhões em molho shoyu, molho inglês e molho de pimenta

* R$ 32,7 milhões em pizzas e refrigerantes

* R$ 50,1 milhões em biscoitos

* R$ 6,1 milhões em frutos do mar

* R$ 14,5 milhões em café

* RS 16, 5 milhões em batata frita

* R$ 12,4 milhões em ervilhas

* R$ 7,1 milhões em bacon defumado

* R$ 45,2 milhões em embutidos

* R$ 89, 6 milhões em carne bovina

* R$ 123, 2 milhões em sobremesas diversas

* R$ 15,6 milhões em leite condensado, que nunca pode faltar na mesa do presidente.

Publicada em ordem alfabética, a lista do Painel de Compras do Ministério da Economia, que pode ser acessado na internet, é imensa, tem de tudo do bom e do melhor. Me deu até fome.

O campeão de despesas, como era de se esperar, é o Ministério da Defesa, com R$ 632 milhões em alimentação e mais de R$ 2,5 milhões em vinhos.

Claro que essas despesas incluem também a alimentação da criadagem que serve as excelências e outros funcionários do governo, além dos convidados da corte.

Só no Alvorada, são 43 funcionários (cozinheiros, chefes de cozinha e garçons) para atender o casal presidencial e a filha Laura, sem contar o batalhão de seguranças e a bicharada dos jardins do palácio, que também precisam comer.

Comparando as mordomias de ontem e de hoje, os superfuncionários dos governos militares eram bem mais modestos, mas foi ali que tudo começou, no tempo em que havia censura à imprensa.

Em 1976, a série do Estadão ganhou o Premio Esso de Reportagem. Hoje, ninguém mais liga para isso. As mordomias estão disseminadas nos Três Poderes e qualquer prefeitura do interior tem as suas, tudo dentro da lei, é claro.

Vida que segue.

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