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OPINIÃO

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Vidas cruzadas: pastor Ribeiro, filha de Romário e "blogueirinha diferente"

Sarinha Araujo se denomina como uma "blogueirinha diferente": história de superação que o ministro Milton Ribeiro deveria ler - Acervo pessoal
Sarinha Araujo se denomina como uma "blogueirinha diferente": história de superação que o ministro Milton Ribeiro deveria ler Imagem: Acervo pessoal

Colunista do UOL

18/08/2021 19h39

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Imaginava-se que, depois do doutor Abraham Weintraub, aquele que queria prender os ministros do STF, foi demitido e hoje está no Banco Mundial, nada de pior poderia acontecer para a educação brasileira, tão vilipendiada neste governo.

Ledo e triste engano. Um ano atrás, Jair Messias Bolsonaro, nosso grande head hunter, descobriu o talento de Milton Ribeiro, 63 anos, teólogo e pastor da Igreja Presbiteriana Jardim da Oração, em Santos (SP), para ser o quarto ministro da Educação do seu governo (um deles nem chegou a assumir).

Deve ter contribuído para a escolha a pregação "A Vara da Disciplina", proferida pelo pastor em abril de 2016, na qual ele defendia o castigo físico para educar crianças. "Essa ideia, que muitos têm de que a criança é inocente, é relativa. Um bom resultado não vai ser obtido por meios justos e métodos suaves. As crianças devem sentir dor", disse ele na época, sem jamais poder imaginar que um dia viraria ministro da Educação.

Em lugar da Pedagogia do Oprimido, do execrado Paulo Freire, o Brasil era apresentado agora à Pedagogia da Porrada, que sintetiza bem a natureza desse governo.

No dia seguinte à nomeação, Ribeiro correu para apagar do seu canal no Youtube o vídeo da pregação, e reclamou que as frases foram tiradas de contexto.

É sempre assim. "Jamais falei em violência física na educação escolar", jurou em seu discurso de posse, mas o estrago já estava feito.

Discreto e formal, em seguida o novo ministro sumiu de circulação e não se falava mais nele, até que esta semana o pastor bateu de frente com o jogador Romário, hoje senador pelo Rio de Janeiro, que o chamou de "completo idiota", depois de uma entrevista concedida por Ribeiro à TV Brasil, em que defendeu turmas exclusivas para alunos com deficiência, criadas por decreto presidencial em outubro do ano passado.

Na contra-mão do mundo civilizado, o ministro justificou a segregação: "O que é inclusivismo? A criança é colocada dentro de uma sala de alunos sem deficiência. Ela não aprendia, ela `atrapalhava´ _ entre aspas, esta palavra eu falo com muito cuidado _ ela atrapalhava o aprendizado dos outros, porque a professora não tinha equipe, não tinha conhecimento para dar a ela atenção especial". Por que então não prover equipe e conhecimento? Separar é mais fácil...

Pai de Ivy, uma linda menina de 16 anos, com síndrome de Down, Romário foi com os dois pés para cima de Ribeiro: "Somente pessoa privada de inteligência, daquelas que chamamos de imbecil, pode soltar uma frase como essa. Eles existem aos montes, mas não esperamos que ocupem o lugar de ministro da Educação de um país".

O ministro se sentiu magoado e reagiu: "Sr. Senador @RomárioOnze, é muito deselegante quando um representante do parlamento se dirige desta maneira a um Ministro de Estado, ainda mais com base em uma frase retirada do contexto".

Assim como na defesa da Pedagogia da Porrada, as frases do pobre pastor sempre são tiradas de contexto, mas o mais curioso é um expoente do governo bolsonarista vir falar em "deselegância".

Romário não se deu por vencido: "Sr. Ministro @mribeiroMEC, deselegância, imbecilidade e idiotice é o que o Sr. vem fazendo com a educação do nosso país. Toma vergonha na cara".

O que Ribeiro não esperava é que a própria filha de Romário lhe escrevesse uma carta aberta, publicada em seu Instagram, na qual ensina: "Sabe, eu tenho síndrome de Down, sou uma pessoa com deficiência, e sou estudante. Eu estudo para ter um futuro e ajudar o meu país. Eu não atrapalho ninguém. A fala do senhor revela muita falta de educação. Como pode achar que a deficiência torna alguém incapaz de estudar?", pergunta-lhe Ivy.

Na mesma entrevista à TV Brasil, o ministro da Educação ainda disse que a universidade deve mesmo ser reservada "para poucos" como forma de ser "útil à sociedade", entre outras barbaridades.

Deputados federais da Comissão Externa de Acompanhamento do Ministério da Educação divulgaram nota oficial na qual exigem que Ribeiro "reveja a sua postura e peça desculpas aos mais de 1,5 milhão de estudantes brasileiros com deficiência".

Uma delas é Sarinha Araujo, a "blogueirinha diferente", cuja história o ministro deveria ler nesta mesma edição do UOL que publicou a carta da filha de Romário.

Em comovente depoimento à repórter Ana Bardella, de Universa, ela conta como superou as graves deficiências físicas, que deixam suas pernas dobradas e limitam o movimento das mãos.

"Ao nascer, fui diagnosticada com uma deficiência chamada artrogripose. Por isso, desde cedo, preciso de ajuda para atividades básicas do dia a dia, como cozinhar e tomar banho. Mas isso nunca me impediu de ser uma pessoa alegre, querida entre as pessoas da minha cidade e de experimentar de tudo um pouco na vida".

Já casada e com dois filhos, Sarinha foi estudar pedagogia e mantem hoje um blog com milhares de seguidores no qual narra o seu cotidiano, sempre com bom humor. No começo, ela só mostrava o rosto, com medo de revelar sua deficiência, mas depois que passou a aparecer de corpo inteiro, aumentou o número de fãs.

As trajetórias do ministro pastor Milton Ribeiro, com sua pedagogia da porrada e da exclusão, de Ivy, a filha do Romário, e da "blogueirinha diferente", como ela se denomina, nunca se cruzaram na vida real, mas são retratos de um mesmo país, dividido entre quem acredita na igualdade e na superação das deficiências, e quem investe no atraso e no obscurantismo numa área tão vital como a educação.

O futuro é de Ivy e Sarinha. Os doutores Weintraub e Ribeiro, piores ministros da Educação da nossa história, logo estarão de volta ao anonimato, de onde nunca deveriam ter saído.

Apesar de tudo, não poderemos nunca perder as esperanças de viver num país menos desigual, mais justo e humano, em que todos possam estudar nas mesmas escolas e ter as mesmas oportunidades na vida.

Vida que segue. .