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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Faz sentido manter o Superior Tribunal Militar?

Colunista do UOL

21/04/2022 00h02Atualizada em 22/04/2022 14h35

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São quinze os ministros do Superior Tribunal Militar, todos ungidos pelo presidente da República mediante aprovação na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal. Recebem um salário mensal de R$ 38.238,73 e são empossados em caráter vitalício. Permanecem em seus cargos até completarem 75 anos, salvo quando manifestam desejo de deixar o tribunal antes dessa idade. Ou batem as botas - no caso, os coturnos.

Entre os quinze ministros, há quatro representantes do Exército, três da Marinha e três da Aeronáutica. Os outros cinco são civis. Mesmo esses, por melhores que sejam suas biografias e por mais que seus currículos os credenciem para a função, costumam gozar de tamanho envolvimento com a elite fardada que em nada (ou quase nada) contribuem para arejar a corte ou contrapor o corporativismo sistemático que parece vitimar o STM. O vice-presidente do tribunal, por exemplo, é bacharel em Direito e ingressou no Ministério Público Militar há mais de quatro décadas. Deu aulas na Academia Policial Militar do Guatupê, no Paraná, e é membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Militar e Humanitário, vinculado à Associação Nacional do Ministério Público Militar.

Há hoje uma única mulher entre os ministros do STM. Quinze anos atrás, não havia nenhuma. O pioneirismo, anacrônico após meio século de revolução sexual, sessenta anos da difusão das ideias de Betty Friedan e setenta de Simone de Beauvoir, é de uma procuradora federal, nomeada para o tribunal em 2017. Mestra pela Universidade de Lisboa, doutora em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais, procuradora federal com passagens pelo Ministério da Cultura, pelo Congresso Nacional, pelo Tribunal Superior Eleitoral e pela Casa Civil antes de entrar para o STM. Por melhores que sejam suas credenciais e por mais combativa que seja sua atuação na casa, a ministra é casada com um general de divisão, o que basta para reforçar, aos olhos de muitos, a sensação de corporativismo e de jogo combinado.

Entre janeiro e dezembro de 2021, o STM finalizou 1.526 processos, conforme tabela publicada no mais recente boletim estatístico anual divulgado pelo tribunal. À guisa de comparação, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), formado por 33 ministros, finalizou 390.996 processos no mesmo período.

Reportagem publicada no ano passado pela Folha de S.Paulo mostrou que apenas um oficial de alta patente foi condenado pelo STM num intervalo de pelo menos dez anos. Trata-se de um contra-almirante condenado por lesão corporal culposa em 2015. A pena a ele atribuída foi de dois meses de detenção - dois meses -, a menor das penas previstas em lei para o crime referido. Nesse mesmo período, pelo menos vinte investigações foram arquivadas. As condenações de civis nos tribunais militares são mais frequentes. Também no ano passado, por exemplo, três homens foram condenados pelo STM à pena de dois anos de reclusão por picharem o muro de um quartel em Salvador (BA). A Defensoria Pública da União apelou, questionando a competência da Justiça Militar para julgar civis e alegando não haver lesão relevante no muro do quartel. Deu com os burros n'água. Se a Justiça Militar entender que um civil cometeu crime militar, ou crime contra as Forças Armadas, a soberania nacional etc., então poderá julgá-lo.

A impressão que se tem é que o STM tem competência de sobra para julgar civis. O que lhe falta, com base no recente histórico, é "competência" para julgar militares. Tanto nos casos graves, que envolvem crimes previstos no código penal, como a prática da tortura - crime de lesa-humanidade e imprescritível -, como nos casos menos graves, que envolvem infrações aos estatutos das próprias Armas. Em junho do ano passado, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello foi absolvido em tempo recorde da denúncia, recebida pela Ouvidoria do Ministério Público Militar, de ter participado, em maio, de um evento político ao lado de Jair Bolsonaro, o que é vetado pelo Estatuto do Exército. A acusação foi barrada pelo próprio MPM, que nem sequer abriu investigação. Não bastasse, o Exército teve a cara de pau de impor sigilo de cem anos ao processo que culminou em sua absolvição.

Para que serve o STM, afinal? Para condenar pichadores e absolver militares que ousem trocar a patente de cabo pela de cabo eleitoral? Se é isso, não bastaria um Supremo Tribunal de Justiça fortalecido e ampliado?

Argumenta-se com frequência que o Superior Tribunal Militar seria indispensável em razão da necessidade de analisar e julgar processos que versam sobre condutas muito específicas, de um segmento da população que tem sua atividade profissional regida por regras igualmente específicas. Ora, e até quando nosso projeto de democracia irá conviver com a tese mal ajambrada de que não se pode romper esse apartheid? Por que a lesão corporal praticada por um general merece um tratamento diferente do que teria um pedreiro que cometesse idêntica lesão? A cocaína encontrada num avião da FAB é diferente da cocaína encontrada numa balsa que atravessa o Rio Japurá, da Colômbia para o Brasil, ou a flagrada no fundo falso de uma mala com rodinhas no aeroporto de Florianópolis?

Mais do que isso: o que há de tão complexo nos crimes marciais que não possam ser apreciados por um tribunal generalista? Ora, o Supremo Tribunal Federal, com menos ministros (são onze contra os quinze do STM), é chamado diuturnamente a deliberar sobre temas tão complexos quanto célula tronco, transfobia, cobrança de ICMS, prisão após condenação em segunda instância e direito ao esquecimento, diversidade temática em que é acompanhado pelo Superior Tribunal de Justiça, e não se cogita trocar o clubinho verde-oliva da impunidade por um sistema mais arejado e menos corporativista no qual militares não sejam julgados exclusivamente por seus camaradas?

O STM é presidido desde março do ano passado pelo excelentíssimo senhor Ministro General do Exército Luís Carlos Gomes Mattos, membro da casa desde 2011, esse que reagiu com deboche à escandalosa notícia de que as práticas de tortura foram repetidamente informadas à Justiça Militar entre 1975 e 1985 e que nem uma nesga de reação foi movida para impedir sua continuidade. Seu deboche reafirma a triste condição de falência múltipla de órgãos em que se encontra nossa combalida democracia. E alimenta a indignação dos que assistimos consternados a essas declarações.

A boa notícia é que o General Luís Carlos Gomes Mattos completará 75 anos em julho, idade da aposentadoria compulsória fixada após a recente sanção da vergonhosa "PEC da Bengala". A má notícia é que em seu lugar virá outro, e outro mais, indefinidamente, como as teimosas cabeças de uma Hidra. Quantos militares seguirão aplaudindo a tortura, protegendo seus pares, corrompendo, refestelando-se com toneladas de salmão, filé mignon, Stella Artois e uísque 12 anos, repetindo a história da carochinha da ameaça comunista em 1964 e acobertando os crimes de lesa humanidade praticados como política de Estado pelo regime que ainda idolatram?

Esta coluna foi editada ao fim do dia de sua publicação, a fim de detalhar o trecho referente à natureza dos membros que compõem o STM e evitar incompreensões.