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Chico Alves

Na Bolívia, a "pacificação" na ponta dos fuzis

Apoiadores de Evo Morales marcham pelas ruas de La Paz, na Bolívia - Carlos Garcia Rawlins/Reuters
Apoiadores de Evo Morales marcham pelas ruas de La Paz, na Bolívia Imagem: Carlos Garcia Rawlins/Reuters

Colunista do UOL

17/11/2019 17h12

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É certo que a situação política na Bolívia não estava bem parada. O presidente Evo Morales afrontou a Constituição que ele mesmo assinou, candidatando-se ilegalmente à reeleição. Além disso, a OEA denunciou fraude na votação realizada. Foi então que a oposição entrou em campo. Desde então, confirma-se em várias cidades bolivianas a máxima segundo a qual não há nada tão ruim que não possa piorar. Em nome de uma estranha "pacificação", polícia e Forças Armadas massacram nas ruas os partidários de Morales.

Tanto quanto a queda do ex-presidente, a forma como a senadora Jeanine Áñez tomou o poder motivou as multidões de indígenas a protestar em La Paz e Cochabamba. Ela autoproclamou-se presidente da República em sessão sem quórum e da qual outros políticos da linha sucessória foram impedidos de participar. Com a mão sobre uma enorme bíblia, fez chamado à união do país, enquanto as tropas oficiais começavam violenta repressão.

Vídeos com as cenas da barbárie praticada pela policia e pelas milícias contrárias a Evo Morales correm o mundo. Policiais abrem fogo contra aglomerações de manifestantes, milicianos em motocicletas promovem linchamento de ativistas solitários que encontram pela frente, presos são humilhados e agredidos.

Nos pronunciamentos, o grupo político que tomou o poder diz que quer seguir as regras da democracia. Añez promete convocar eleições "o mais cedo possível", mas ninguém sabe o que isso significa.

A verdade é que a presidente atual assumiu o cargo sem respaldo legal. Se Morales deu um golpe ao tentar a reeleição contra a Constituição, Añez também é golpista, no sentido inverso.

Ela parece não ligar para isso. Também Luis Fernando Camacho, um dos líderes dos protestos contra o governo de Morales, não dá a mínima para esse questionamento legal. Em meio à crise institucional, gasta seu tempo fazendo discursos inflamados em tom de pregação religiosa: "Satanás, fora da Bolívia!", gritou, dias atrás, em comício em Santa Cruz de la Sierra, a seus apoiadores. Boa parte deles é católico ultraconservador ou evangélico neopentecostal.

Tanto nas posições de Camacho quanto nas de Añez pode-se identificar rejeição a valores da cultura indígena, que são caros à maior parte da população boliviana. Em várias manifestações de seus partidários foi queimada a bandeira Whipala, que representa a resistência dos povos ancestrais dos Andes.

Nos conflitos dos últimos dias, pelo menos nove pessoas foram mortas e quase duas centenas ficaram feridas. Infelizmente, nada indica que esse número ficará por aqui. A instabilidade na Bolívia periga minar o grande legado de Evo Morales, reconhecido até por seus opositores: o consistente crescimento econômico. Não se sabe até quando se estenderão os confrontos e, enquanto durarem, comércio, indústria e serviços funcionarão precariamente.

A preocupação com os números da economia, porém, fica para depois. Nesse momento, o principal a ser preservado é a integridade dos bolivianos. Añez e seus apoiadores deveriam olhar para o Chile e compreender como cresceu por lá a revolta popular após a feroz repressão aos protestos contra o presidente Sebastian Piñera, em que mais de 200 manifestantes ficaram cegos por causa de tiros de balas de borracha desferidos pelos soldados. Até hoje, a vida dos chilenos não voltou à normalidade e Piñera certamente deve estar arrependido de demorar tanto a negociar.

No Chile, a revolta dos opositores cresceu à medida que a violência da repressão avançava.

Que o diálogo na Bolívia se estabeleça o quanto antes na prática e não apenas nos discursos declamados à imprensa. Añez deve saber muito bem que a paz não se constrói na ponta do fuzil.