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Chico Alves

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Lotado de militares, Ministério da Saúde é o paraíso dos atravessadores

07.jul.2021 - Ex-diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, chegando ao Senado Federal para depor na CPI da Covid - Marcos Oliveira/Agência Senado
07.jul.2021 - Ex-diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, chegando ao Senado Federal para depor na CPI da Covid Imagem: Marcos Oliveira/Agência Senado

Colunista do UOL

07/07/2021 15h36

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No meio da maior pandemia da história da humanidade, em setembro do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro decidiu substituir os epidemiologistas e infectologistas que comandavam o Ministério da Saúde por militares. Junto com o general da ativa Eduardo Pazuello, que assumiu a pasta, vários coronéis se aboletaram em cargos antes ocupados por cientistas renomados.

O objetivo de Bolsonaro era ter no ministério uma tropa obediente a seus desvarios. Além disso, Pazuello e equipe chegavam com a fama de craques em logística — expertise muito útil em uma crise sanitária — e durões com desperdício de gastos e atos de corrupção.

Como se sabe, os militares brasileiros têm sobre si um conceito que os situa moralmente acima dos civis. Desde o início do mandato de Bolsonaro, o pretexto para entupir o Executivo de gente oriunda da caserna era que essa seria a melhor forma de combater a ação de corruptos e corruptores no serviço público. Na área da saúde, inclusive.

Nove meses após a posse de Pazuello, o Brasil se consolidou como exemplo mundial de fracasso na pandemia, atingindo a trágica marca de 520 mil mortos. Nesse tempo, ficou patente o despreparo do general para a função: o governo brasileiro não fez testagem em massa, não promoveu campanha pelo distanciamento social, divulgou tratamentos ineficazes, atrasou a compra de vacinas, entre outras barbeiragens.

Para identificar quem deve ser responsabilizado por esse desempenho desastroso, foi criada a CPI da Covid.

Depois de se debruçar sobre várias modalidades de incompetência e negligência do ministério, a comissão passou a investigar a negociação de vacinas.

A partir daí, descobriu-se que a catástrofe do coronavírus no país está ligada não só ao despreparo, mas, ao que tudo indica, também à corrupção na pasta. Os senadores da CPI se esforçam agora para comprovar as suspeitas levantadas.

A prática de corrupção ainda está por ser confirmada, mas o que já se pode afirmar é que o ambiente do Ministério da Saúde era (ou é) amplamente propício a tramoias.

Como os integrantes da comissão já sublinharam, enquanto a negociação com a Pfizer demorou vários meses para começar, apesar da torrente de e-mails enviados pela empresa oferecendo o imunizante ao governo, outra vacina, a indiana Covaxin, teve contrato assinado em tempo recorde. A grande diferença entre os dois casos foi a atuação de uma empresa intermediária a favor da Covaxin.

O processo com a empresa indiana prosseguiu cheio de irregularidades, com denúncia de pressões indevidas sobre o setor de importação para apressar a negociação e a tentativa de emplacar uma nota fiscal repleta de ilegalidades. Após a denúncia, a compra da Covaxin foi suspensa.

A partir desse episódio, veio à tona um batalhão de atravessadores.

Além da Precisa, empresa que já tinha dado calote no Ministério da Saúde, em 2017, negociaram ou tentaram negociar milhões de doses de vacina com o governo a empresa Davati, um cabo da PM de Minas, a empresa Belcher, uma organização evangélica e militares como o coronel Marcelo Blanco (um ex-funcionário do ministério ligado a Pazuello que abriu recentemente uma empresa de comercialização de insumos para saúde), o coronel Guerra e outros.

Até mesmo a vacina AstraZeneca, que já tem acordo com a Fiocruz, foi oferecida por um intermediário.

O depoimento de hoje à CPI confirma a barafunda: apesar de ter negado a cobrança de propina, o responsável pelo setor de logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, admitiu ter tratado da aquisição de vacinas em um restaurante de Brasília.

Mais: durante a fala de Roberto Dias, alguns senadores levantaram a possibilidade de ele ter sido alvo de uma espécie de campanha do ex-secretário executivo da pasta, Elcio Franco, um coronel do Exército.

Como se vê, a ideia de escalar militares para comandar o combate à pandemia foi um fracasso, tanto do ponto de vista de organização quanto pelo viés do combate à corrupção.

Em plena pandemia, com um número absurdo de óbitos, a pasta se vê também às voltas com acusações de maracutaias inéditas.

A ciência comprova que cidadãos fardados são feitos de matéria igual à dos civis - mesmo que a caserna duvide. Boa parte dos militares são convictos de que o regime disciplinar a que são submetidos os torna mais patriotas, mais honestos e mais produtivos que os demais.

Muitos civis pensam o mesmo, mas desde que tomaram o Ministério da Saúde a aprovação dos milicos caiu drasticamente. Segundo o Instituto XP-Ipespe, a credibilidade deles foi de 70%, em dezembro de 2018, para 58%, em junho de 2021.

O lastimável cenário verificado na atual crise sanitária certamente teria contornos menos trágicos se os epidemiologistas e infectologistas continuassem à frente da pasta. Simplesmente porque são eles que entendem desse riscado. No sentido inverso, não é desejável que sanitaristas comandem tropas nos campos de batalha.

Caso fossem chegados a autocrítica, os militares que se consideram superiores aos paisanos deveriam reconhecer que são de carne e osso. Passíveis de erros como quaisquer outros, se saem melhor nos quartéis.

A lição vale para generais, coronéis, tenentes e demais patentes.

Em especial, esse pitaco serve para um certo capitão da reserva.