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Demissão de ministro da Defesa põe na mesa a carta da radicalização

O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva - Marcello Casal Jr./Agência Brasil
O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva Imagem: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Colunista do UOL

29/03/2021 17h52

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* Vinícius Rodrigues Vieira

O bolsonarismo no poder caminha para seus estertores ou a radicalização. No mesmo dia em que perdeu o olavista Ernesto Araújo, de saída do Itamaraty, o presidente Jair Bolsonaro demitiu o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva. A queda de um ministro tido como moderado pode resultar numa possível retirada do apoio militar dos oficiais menos radicais que levaram o atual chefe de Estado ao poder e que, em última instância, sustentam seu (des)governo.

A mudança é vista como o começo de uma reforma ministerial. O resultado do processo é imprevisível: haverá mais espaços para o centrão ou uma fuga do governo para a extrema-direita, justamente na semana em que relembramos o golpe militar de 31 de março de 1964? Uma eventual demissão do também moderado general Pujol, comandante do Exército, será a indicação cabal de que é mais provável a segunda alternativa.

De todo modo, há evidências para prever que, quanto mais acuado Bolsonaro estiver, mais ele flertará com o radicalismo, que emana com certa frequência dos lábios de bolsonaristas inveterados.

A última vez que isso ocorreu significativamente tinha sido no domingo anterior à segunda-feira da queda dos ministros. As redes de apoio ao presidente procuraram capitalizar a morte de um soldado da Polícia Militar da Bahia no Farol da Barra, em Salvador, após atirar contra colegas de farda, num aparente surto psicótico.

Os eventos que culminaram nela lançam luz sobre a maior das ameaças que nossa democracia enfrenta no momento: a potencial rebelião de policiais militares contra governadores e a favor de Bolsonaro.

Não se restringe a mera discordância ideológica ou à evidente falta de sensibilidade do chefe de Estado sua constante crítica àqueles que comandam os executivos estaduais. Trata-se de um roteiro bem planejado, cuja conclusão lógica é uma guerra civil, bem aos moldes do que Bolsonaro apregoava quando era um deputado federal do baixo clero, defensor dos interesses dos militares de baixa patente.

A evidência mais conhecida do pensamento do presidente é o famoso vídeo de 1999, em que, entre outras barbaridades, ele defende a morte de 30 mil brasileiros.

São vários os relatos de que, nas horas seguintes ao início do surto do soldado, redes sociais de bolsonaristas entraram em polvorosa. Com o rosto pintado de verde e amarelo, Wesley Soares Góes teria gritado às 14h de domingo: "Comunidade, venham testemunhar a honra, ou a desonra do policial militar do estado da Bahia". Depois de 3h30 de negociação, Góes começou a atirar contra seus colegas que procuravam neutralizá-lo. Não houve alternativa aos demais PMs a não ser reagir à altura.

Tudo o que desejam os radicais que integram a base de apoio ao presidente na sociedade é uma justificativa para jogar o país de vez num caos do qual Bolsonaro possa emergir como o salvador da pátria. Não sem coincidência, PMs ameaçam uma greve contra o governador da Bahia Rui Costa, do PT— principal partido de oposição.

Bolsonaristas entraram na onda e endossam as ameaças, vistas como parte de uma suposta luta pela liberdade, que teria sido suprimida com as medidas estaduais de combate ao coronavírus. Entre os agitadores, estão a deputada federal e presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) Bia Kicis (PSL-DF) e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), cujas credenciais dispensam apresentações. Não se comportam como parlamentares, mas como chefes de facção, cujo comandante-mor está instalado no Palácio do Planalto.

Mais que retórica inflamada, para manter a base mobilizada, bolsonaristas constroem, sob o consentimento do presidente, a antessala social de um golpe, quiçá de uma guerra civil. O sonho do deputado Bolsonaro virará, assim, realidade sob a liderança do comandante em chefe. Que defesas teremos contra esses usurpadores enquanto enterramos nossos mortos?.

A imprensa deu amplo destaque para as desavenças entre Senado e Planalto em torno do chanceler Ernesto Araújo. Nada mais equivocado achar que Brasília é o palco central do embate entre bolsonarismo e democracia. As instituições já estão carcomidas.

Para barrar a escalada autoritária que põe em xeque poderes no nível subnacional, cabe olhar e agir em pontos-chave do tecido social e suas ligações com os estratos militares. Detentores de baixas patentes das polícias militares são o elo entre a sociedade e aquilo que sobrou do Estado do qual mais depende a manutenção do precário status quo.

Se PMs ao redor do país romperem com governadores, tal como os amotinados do Ceará, teremos um princípio de guerra civil. Se os governadores conseguirem controlar as tropas que lhes deveriam ser leais, temos, no mínimo, condições de permanecer nessa toada pelo menos até as eleições de 2022. Para tanto, os chefes dos executivos estaduais vão precisar da lealdade dos oficiais de alta patente e, eventualmente, do apoio do comando das Forças Armadas, as quais, nesse cenário, entrariam em claro conflito com Bolsonaro.

Será que as razões para que Azevedo e Silva tenha saído do governo possuem alguma relação com esse cenário tenebroso? Cedo para concluir algo. Por ora, fica evidente que as 300 mil mortes por covid, a insistência de Bolsonaro em conduzir uma política externa contra os interesses do país e a paralisia econômica já tiraram o entusiasmo de alguns oficiais com o capitão. Nesse cenário, porém, os boinas-verdes mais moderados podem ser substituídos pelos mais radicais.

O resultado dessa equação nem Deus pode prever. O todo poderoso deve estar ocupado socorrendo os enfermos de corpo. Quanto aos enfermos de mente e espírito, vamos ter de lidar com eles mais cedo ou mais tarde. Não se advoga aqui um golpe contra Bolsonaro, tal como defendido por Mario Sergio Conti. Mas não me parece fazer sentido que generais continuem a apoiar um presidente que promove a divisão nacional.

O desfecho da crise não está claro. No entanto, o caminho passa por tirar Bolsonaro da presidência. Uma renúncia coletiva de ministros — em especial Paulo Guedes, o pseudo-tsar da Economia, militares que ocupam cargos civis — aliada a um pacto de transição com o Supremo e o Legislativo seria o xeque-mate nesse desgoverno e suas ambições golpistas. Em seguida, o vice-presidente Hamilton Mourão assumiria a chefia do governo, mantendo as sinecuras de militares nos escalões inferiores.

Tal movimento, porém, seria o reconhecimento tácito para a História de que, em algum momento — mais precisamente entre 2018 e o começo de 2021 —, houve colaboracionismo das elites — econômica, política e militar — com o pária dos párias, alguém que jamais teve condições de ser alçado à suprema magistratura da nação e a transformou num cemitério de gente e ideias.

* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na FGV