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Democracia e Diplomacia

Renascença: construindo uma política externa pós-Bolsonaro

Tomas Griger
Imagem: Tomas Griger

Colunista do UOL

11/09/2020 04h00

Assim como cada pessoa constrói sua identidade e seu lugar na comunidade a partir de como se relaciona com as outras, a identidade e as possibilidades de uma nação se constroem a partir de suas formas de inserção no mundo. Não é pequena, portanto, a responsabilidade da política externa, das relações internacionais e da diplomacia brasileira frente ao destino do país, sua reputação, sua autoimagem e suas possibilidades de desenvolvimento com justiça socioambiental.

Com esperança e confiança no futuro de nosso país, mas também com a consciência de que o amanhã precisa ser construído desde já, no presente, foi publicada, neste 7 de setembro —data em que refletimos sobre os 198 anos de independência do Brasil— a primeira versão de um programa de reconstrução da política externa brasileira para o período pós-Bolsonaro.

A atual antipolítica externa, sem auferir qualquer ganho concreto, nos subordinou a uma facção extremista do sistema politico norte-americano; comprou brigas gratuitas com países e lideranças relevantes; sabotou interesses comerciais para favorecer os dos EUA; alienou os maiores parceiros comerciais, como a China, e outros grandes compradores de produtos brasileiros, reduzindo nossos mercados externos; ofendeu setores importantes da população em votações internacionais sobre direitos das mulheres e não-discriminação; prejudicou possibilidades de acesso do Brasil a bens estratégicos de saúde em meio a uma pandemia global; abandonou milhares de cidadãos brasileiros residentes na Venezuela, privando-os de serviços básicos e sangrando a economia de Roraima em nome de uma cruzada fracassada e sem rumo, entre tantas outras infâmias e tiros no pé.

São apenas alguns exemplos. A lista de barbaridades em curto espaço de tempo é longa e já bem conhecida. Criticá-la é preciso, mas talvez mais importante seja aproveitar o pouco de positivo que essa política nos trouxe para começar a imaginar e construir uma política externa digna do Brasil e preparada para o restante do século 21.

O que a atual antipolítica externa —descolada não apenas das melhores tradições diplomáticas brasileiras, mas também dos interesses concretos do país, dos princípios constitucionais, e de noções básicas de racionalidade e decoro— nos teria trazido de positivo? O consenso.

A constatação da inépcia e disfunção atuais é daqueles poucos consensos que unem atores e observadores dos mais diversos matizes políticos, da esquerda à direita, dos movimentos sociais ao empresariado.

Abre-se aí, quem sabe, janela de oportunidade para, às portas do bicentenário, um processo de reflexão mais amplo que busque promover convergências sobre o que virá depois do atual período de obscurantismo e terra arrasada.

Não se trata de simplesmente restaurar o passado, que tampouco esteve livre de deficiências e pontos cegos: trata-se de recuperar valores essenciais e, a partir deles, construir programa de inserção internacional capaz de posicionar o Brasil para melhor enfrentar os desafios que se colocam ao país e ao mundo, entre os quais as desigualdades, a pobreza, as discriminações e violências, a mudança do clima e a deterioração do meio ambiente.

Os 10 objetivos gerais e 100 metas implementáveis que compõem a versão zero do Programa Renascença são apenas um ponto de partida: uma provocação ao debate, inicialmente colhida pelo Instituto Diplomacia para Democracia entre diplomatas, servidores públicos, acadêmicos e outros atores, para ser trabalhada mais amplamente daqui em diante. Seus alicerces são os objetivos fundamentais da República e os princípios da sua política externa, listados respectivamente nos Artigos 3º e 4º da nossa Constituição.

Em tempos em que o básico deve ser recordado, não custa, aliás, listar aqui alguns desses objetivos e princípios constitucionais: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Observar os princípios da independência nacional; a prevalência dos direitos humanos; a autodeterminação dos povos; a não-intervenção; a igualdade entre os Estados; a defesa da paz e a solução pacífica dos conflitos; o repúdio ao terrorismo e ao racismo; e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.

A partir da sólida base que nos oferece a Constituição, o documento reconhece algumas carências e prioridades para essa nação de 211 milhões de habitantes em que as desigualdades são enormes e em que mais de 50 milhões de brasileiros estão desempregados, desalentados ou sub-ocupados; em que a maioria da população, mais de 110 milhões, se define como não-branca; em que 108 milhões são mulheres; em que há cerca de 300 povos indígenas, que falam algo em torno de 274 diferentes línguas e dialetos, e quase 6.000 comunidades remanescentes de quilombos.

A redução das desigualdades socioeconômicas e a promoção da equidade e o fim da discriminação de raça, gênero, orientação sexual, e de qualquer outra ordem são prioridades, juntamente com a preservação e uso sustentável de nossos recursos naturais, sem os quais qualquer futuro digno será inalcançável.

A política externa, como parte integrante de um programa de país, deve, portanto, buscar servir a esses objetivos. São eles também que determinam a necessidade de inclusão social não apenas no resultado, como também no processo.

A participação da sociedade na construção da política externa é essencial. Uma política voltada à redução das desigualdades, da discriminação, e do desenvolvimento sustentável não será feita apenas por especialistas e setores com acesso privilegiado às instâncias decisórias.

É preciso legitimá-la com um desenho institucional que se abra para participação social sem deixar de respeitar as atribuições constitucionais do presidente eleito e do Congresso Nacional, que definem direcionamentos e chancelam atos internacionais, e do Itamaraty como órgão executor especializado.

O diálogo que se quer como prática diária de uma política externa revigorada inspira o diálogo que o Programa Renascença propõe desde já.

As ideias que compõem o programa não são novas, nem originais; pelo contrário, a maior parte delas reflete anseios já conhecidos na esfera pública. Tampouco são de propriedade exclusiva; pelo contrário: quanto mais pessoas e instituições comentarem, criticarem, reaproveitarem, editarem, reproduzirem, adotarem, e dialogarem com os objetivos e metas do programa, mais próximo estará de alcançar seus objetivos.

Em setembro de 2022, refletiremos sobre os 200 anos de nossa Independência. Teremos aproveitado a ocasião se ela servir para motivar propostas de ações sobre o Brasil e seu lugar no mundo.

A mesma atitude de diálogo aberto é também oferecida na presente coluna. Este espaço, gentilmente cedido pelo UOL, ficará aberto a uma diversidade de vozes e perspectivas sobre diferentes aspectos envolvidos na construção de um programa concreto de política externa e suas interfaces com a promoção de uma democracia substantiva. Complementa outros espaços de discussão, como um fórum virtual e debates ao vivo a serem promovidos pelo Instituto como parte do Programa Renascença. Se soma a diversas outras iniciativas que procuram caminhos para superar os enormes desafios do país.

Com moderação e contribuições da professora Suhayla Khalil, a sessão inaugural do Renascença foi aberta de forma brilhante pelos ex-ministros Celso Amorim e Rubens Ricupero, em 8 de setembro. O texto de hoje é finalizado reproduzindo as palavras deste último, ditas na ocasião:

"Teríamos preferido que a celebração dos 200 anos da Independência do Brasil não se fizesse sob a égide de um governo tão destrutivo quanto este. Mas já que a conjuntura é essa, nos resta a tarefa de construir a esperança, que é a confiança de que o amanhã será melhor que o dia de hoje. Podemos estar pessimistas, mas essas coisas não são determinadas, nem algo escrito nas estrelas. Nosso dever é resistir à obra de destruição e ao mesmo tempo lançar os fundamentos de uma construção futura".

*Texto de autoria do núcleo responsável pela concepção do Programa Renascença, coordenado pelo Instituto Diplomacia para Democracia: https://www.diplomaciaparademocracia.com.br/programa-renascenca