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Qual deve ser a relação entre capital estrangeiro e projeto nacional?

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

26/02/2021 04h00

Ricardo Begosso*

Uma das chaves para projetar a superação do subdesenvolvimento é mapear brechas abertas ao desenvolvimento tecnológico. Como diriam Raúl Prebisch e Celso Furtado, o capitalismo é um processo irregular de difusão do progresso técnico e o subdesenvolvimento sofre da incapacidade estrutural de liderar a inovação, restando aos países subdesenvolvidos consumir tecnologias produzidas pelos desenvolvidos.

Que papel, portanto, cabe ao capital estrangeiro —detentor da tecnologia de vanguarda—- na superação do atraso tecnológico?

É preciso distinguir as formas de investimento estrangeiro. Há o investimento em carteira ("de portfólio"), modalidade financeiro-especulativa, e o investimento estrangeiro direto (IED), modalidade produtiva. Sendo o desenvolvimento um processo de transformações de longo prazo, o IED e suas características duradouras interessam mais que os capitais de curto prazo.

Ser incondicionalmente favorável ou desfavorável à participação do IED na economia, porém, é algo dogmático que resulta do distanciamento teórico em relação à realidade.

É muito importante que se tenha em conta a historicidade do investimento estrangeiro. Os fluxos de capitais são moldados por estratégias de Estados nacionais e de empresas multinacionais situadas em um sistema mundial hierarquicamente desigual, cujas clivagens derivam do desequilíbrio tecnológico entre as nações. Essa hierarquia deflagra parâmetros dentro dos quais a circulação internacional do capital se desdobra.

A natureza do IED deve ser tratada, portanto, no âmbito da economia política, ramo do conhecimento mais apropriado para examinar as disputas globais pela riqueza e pelo poder.

Por sua vez, tais rivalidades não podem ter suas essências capturadas apenas pela técnica econômica. Exige-se um exercício interdisciplinar, calcado nas relações internacionais, na história e na geopolítica para compreendê-las.

México honda - Omar Torres/AFP - Omar Torres/AFP
Fábrica da Honda no México
Imagem: Omar Torres/AFP
Ao percorrer esse caminho, afastam-se rapidamente premissas tecnicistas que submetem nossa política em relação aos capitais estrangeiros --trata-se, aliás, de uma não política, ou de uma política de não atrito: só é permitido desenvolver o Brasil na medida em que não se contraponha o desenvolvimento ao mercado, uma entidade sem pátria, sem povo, que se move por remessas de lucros e dividendos e ameaça desinvestimentos para obter políticas públicas mais favoráveis. É bem certo que por aí não se alcança desenvolvimento algum.

Não traçar condições de aceitabilidade aos ingressos de IED desconsidera a segurança econômica. É como abrir o portão e jogar fora as chaves de casa.

Por outro lado, é imperativo que condicionalidades adotadas pelos centros decisórios nacionais sejam transparentes e tenham consistência e pragmatismo.

Nesse sentido, há pistas indispensáveis na história global do IED que devem servir de apoio para a formulação da política econômica brasileira.

A multinacionalização estadunidense e europeia da década de 1950 se deu no contexto de superação do frenesi especulativo dos anos 1920, após profundas mudanças institucionais imporem severos controles ao capital financeiro mundo afora.

As tecnologias do complexo metalomecânico-químico, já maduras nos países desenvolvidos, buscavam oportunidades em novos mercados. O capital estrangeiro que o governo JK (1956-1961) admitiu participar no desenvolvimento, condicionado a critérios de interesse nacional, era evidentemente produtivo.

Durante a abertura econômica da década de 1990, os entraves internacionais aos fluxos financeiros mal resistiam, as antigas tecnologias já não eram tão rentáveis e as emergentes ainda estavam em fase de amadurecimento. A abertura foi um prato cheio para os capitais especulativos, mas não trouxe tecnologias de ponta.

Mesmo representando a forma produtiva de capital estrangeiro, o IED nem sempre produz, efetivamente, algo. Em contextos nos quais a acumulação do capital vive ciclos predominantemente financeiros, esse investimento é mais estável, mas assume formas de controle voltadas para espoliação dos investimentos já amortizados em empresas à venda e com pronta rentabilidade, como na década de 1990 no Brasil.

Para Carlota Perez, revoluções tecnológicas não se disseminam internacionalmente em busca de lucratividade antes de alcançarem certa maturidade em seus países de origem, quando as oportunidades de investimento se tornam decrescentes.

É então que os critérios de seletividade, condicionalidade e essencialidade definidos pelo Estado trabalham bem, permitindo o ingresso conforme a insuficiência do capital nacional e aclimatando o IED a parcerias que transfiram tecnologia às empresas nacionais, públicas e privadas. O capital especulativo, naturalmente, deve ser submetido a controles rigorosos em qualquer cenário.

Instrumentalizar o capital estrangeiro para o desenvolvimento é tarefa demasiado complexa para o livre mercado. Só será alcançada sinergicamente através da organização de aparato institucional para que a comunidade empresarial brasileira obtenha acesso ao que de mais moderno o mundo produz, para depois contribuir com peso na fronteira da inovação tecnológica. À diplomacia econômica compete endereçar externamente a afirmação do progresso tecnológico nacional.

Também é preciso planejamento para quando os contornos da acumulação global não favorecerem os fluxos de capitais produtivos. Em intervalos de hegemonia das finanças, o Estado precisa estar preparado para mobilizar recursos financeiros nacionais, em articulação com a estrutura pública e privada de pesquisa no país, para que jamais se obstrua a construção da autonomia tecnológica.

Em síntese, o país deve estar pronto para edificar sua própria rota em três movimentos distintos: (i) aproveitar os fluxos internacionais de capital quando os vetores tecnológicos circunstanciais forem oportunos; (ii) moldar, a todo tempo, os critérios de entrada e saída do IED; e (iii) operar uma política constante de formatação de uma paisagem tecnológica nacional crescentemente autônoma, com a qual o capital estrangeiro poderá contribuir estrategicamente.

É esse tipo de agência que um projeto nacional de superação do subdesenvolvimento demanda. Ao fim e ao cabo, o desenvolvimento do Brasil é tarefa dos brasileiros. É como dizia Barbosa Lima Sobrinho: o capital se faz em casa. É também, entre outras circunstâncias, a forma como os chineses conduziram seu rápido e bem-sucedido processo de desenvolvimento recente.

Diante disso, não se pode ignorar a atual ofensiva contra o capital nacional patrocinada por nossas autoridades. Caminha para a aprovação no Congresso o Projeto de Lei nº 5.387/19, que "simplifica" a legislação do mercado cambial e atribui ao Banco Central o poder de regulamentar a abertura de contas em dólar no país.

O real, pouco utilizado em transações internacionais, pode ver a redução de seu curso no próprio mercado interno. Será possível transformar depósitos de reais em dólares para fugir de instabilidades.

Com agressivo desemprego, desindustrialização e sucessivas crises políticas, sem previsão de recuperação do terreno perdido nos últimos anos, pode haver tendência à dolarização no Brasil.

Quando perceberem, as autoridades terão pouco a fazer senão torcer para que o capital estrangeiro, em ato de singela boa vontade, não fuja a cada crise, deixando pessoas e empresas ameaçadas de bloqueios bancários.

Os argentinos, que já viveram a dolarização no passado recente, até produziram um filme. Chama-se "A Odisseia dos Tontos".

* Ricardo Begosso é advogado e mestre em direito político e econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e editor do Portal Disparada (https://portaldisparada.com.br/)