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Diálogos Públicos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Previdência social: resgate de uma trajetória

Colunista do UOL

29/04/2022 10h26

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Marcelo Viana Estevão de Moraes *

Os cem anos da Previdência Social no Brasil não trazem boas notícias. Apesar de certo ufanismo ingênuo acerca da reforma mais recente, ocorrida em 2019, o sistema que estava sendo, dentro do possível, aperfeiçoado desde a estabilização monetária dos anos 90 e o advento do real, voltou a se esgarçar. A análise da evolução nos últimos anos das principais dimensões que condicionam a integridade do sistema - macroeconômica, gerencial, e institucional - aponta para o retrocesso. Na economia, a deterioração do mercado de trabalho erodiu o financiamento do sistema. Na gestão, o atendimento aos segurados e beneficiários piorou muito, o que parece indicar um ajuste fiscal "sujo". No campo institucional, a lógica corporativista que orientou a última reforma ampliou desigualdades. Esse desvio na trajetória de aperfeiçoamento do sistema terá que ser corrigido no próximo mandato presidencial.

A previdência social é política pública que deve prover renda ao trabalhador em caso de perda total ou parcial, definitiva ou temporária, de sua capacidade laboral. O suposto é que o trabalhador obtenha regularmente a renda necessária para sua subsistência por meio de sua atividade laboral no mercado de trabalho e que assim contribua para o financiamento do seguro social básico.

O advento do Plano Real em 1994 desnudou os problemas estruturais do sistema previdenciário brasileiro que eram camuflados por uma inflação crônica em patamares elevados. No caso do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), administrado pelo Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), por exemplo, os saldos financeiros acumulados no período precedente foram zerados ainda em 1997. A estabilidade também revelou um conjunto de iniquidades, evidenciando privilégios nos diversos subsistemas. Muitos diagnósticos e "livros brancos" detalharam à exaustão os problemas dos diversos regimes, mas todo esse esforço reflexivo sistemático foi moldado pela análise seminal do Relatório Britto. Mal havia sido concluída a regulamentação da Constituição de 1988, e a Câmara dos Deputados criou em 1992 uma comissão para analisar a crise do sistema previdenciário e sua relatoria coube ao então deputado federal Antônio Britto (PMDB/RS).

Em síntese, esse relatório reconhecia a necessidade de enfrentar a questão em uma tripla dimensão: econômica, gerencial e institucional. Não se tratava de reforma ou gestão: ambas eram necessárias. Reforma das regras do jogo, com base em princípios conceituais, juntamente com a adoção de modernas técnicas de gestão. Mas, evidentemente, sem uma política macroeconômica virtuosa que gerasse emprego e renda, com formalização dos vínculos, não haveria reforma e gestão que bastassem.

O fato é que a evolução política e econômica do país nas duas décadas que se seguiram favoreceu o avanço de uma agenda civilizatória que permitiu o enfrentamento da questão previdenciária em todas essas frentes com resultados substanciais.

A economia foi estabilizada nos anos 90 e foram criadas as condições para um ciclo de expansão do emprego formal e da renda do trabalho, com ampliação da cobertura previdenciária. Isso permitiu estabilizar a necessidade de financiamento do desequilíbrio endógeno do RGPS em torno de 0,8% do PIB, o cenário mais positivo nas projeções feitas no início dos anos 2000. No fluxo financeiro, o componente previdenciário urbano chegou a ser levemente superavitário no cotejo com sua arrecadação líquida, sendo a necessidade de financiamento destinada aos benefícios assistenciais ou semicontributivos. Houve também uma modernização geral das instituições previdenciárias, com profissionalização e informatização. O INSS tornou-se uma organização de excelência na gestão do atendimento e todo o processo de arrecadação migrou para a Receita Federal do Brasil, com a especialização das funções. Por fim, reformas sucessivas foram uniformizando as regras previdenciárias, acabando com regimes especiais sem fundamentação doutrinária, equalizando o tratamento entre trabalhadores da iniciativa privada e servidores públicos, com a adoção para esses últimos de regimes complementares de previdência. Mais importante, uniformizando as normas aplicáveis a servidores nos diversos poderes e nos diversos níveis de governo, com regras de transição similares.

A sinergia virtuosa entre essas dimensões da questão previdenciária entrou em colapso com a crise civilizatória que se abateu sobre o país a partir de meados da década passada.

De uma economia inclusiva que chegou próxima do pleno emprego da força de trabalho, o Brasil tornou-se um dos piores no quesito desemprego no panorama mundial, com redução acentuada no poder aquisitivo das famílias e precarização das relações de trabalho. De 2015 para cá, a "boca de jacaré" entre a curva da arrecadação líquida cadente e a da despesa crescente com benefícios no RGPS só fez abrir, em prejuízo do financiamento. Nos últimos anos, o número de requerimentos de benefícios represados tem sido de cerca de 1,8 milhão, patamar em que já se encontrava antes do advento da pandemia: a situação ensejou interpelação junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). Por fim, a tendência republicana de progressiva uniformização e equalização dos diversos regimes foi revertida: braço forte com o andar de baixo, mão amiga com algumas corporações.

No aniversário de cem anos da previdência no Brasil é preciso exumar as razões do recente retrocesso em uma perspectiva abrangente e adotar iniciativas corajosas para retomar uma trajetória virtuosa.

* Marcelo Viana Estevão de Moraes é integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG), pesquisador do Centro de Altos Estudos de Governo e Administração - CEAG/UnB, autor do livro A Construção da América do Sul: o Brasil e a Unasul (Appris, 2021). Foi Secretário de Gestão (2008/2010) e Secretário de Previdência Social (1994/1999) no governo federal.

** Esse texto é fruto de parceria entre a Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP) e a Coluna Diálogos Públicos.