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Diogo Schelp

OMS não cometeu erros na pandemia, diz especialista da USP em Saúde Global

28.mai.2020 - Enterro de vítimas de coronavírus no Cemitério do Cajú (São Francisco Xavier) no Rio de Janeiro - SAULO ANGELO/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
28.mai.2020 - Enterro de vítimas de coronavírus no Cemitério do Cajú (São Francisco Xavier) no Rio de Janeiro Imagem: SAULO ANGELO/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

10/06/2020 16h03

Quando leu a notícia de que o presidente Jair Bolsonaro havia ameaçado levar o Brasil a romper com a Organização Mundial de Saúde (OMS), Deisy Ventura, que estuda a instituição internacional há anos, teve vontade rir pelo ridículo da declaração presidencial e, em seguida, de chorar, porque os brasileiros seriam os maiores prejudicados.

Coordenadora do doutorado em Saúde Global e Sustentabilidade da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Associação Brasileira de Relações Internacionais, Deisy Ventura concedeu a seguinte entrevista à coluna:

Quais seriam os resultados práticos, para o Brasil, de um rompimento do país com a OMS?

Antes de mais nada, existem dúvidas no plano jurídico sobre a possibilidade de que o Brasil abandone a OMS sem autorização prévia do Congresso Nacional. No entanto, não creio que o respeito à legalidade e aos compromissos internacionais seja uma preocupação do atual governo federal. Os resultados práticos imediatos seriam a perda de importância no campo da saúde global e o sacrifício de importantes interesses brasileiros, inclusive econômicos, com a impossibilidade de participação do Brasil no processo decisório da organização que abarca uma larga gama de temas, eis que ela é a grande produtora de padrões e diretrizes internacionais no campo da saúde, o que chamamos de soft law. Perderia também a participação em programas de saúde pública dos é atualmente ou poderia ser no futuro um potencial beneficiário.

Fica ainda a dúvida se o Brasil abandonaria também tratados internacionais da maior relevância, como o acordo-quadro sobre controle do tabaco, de 2003, cujas negociações o Brasil presidiu; ou o Regulamento Sanitário Internacional, de 2005, que é o mais importante instrumento de controle da propagação internacional das doenças. Ademais, o Brasil tem intensa colaboração com a OPAS, que é o escritório regional da OMS, responsável por diversas iniciativas fundamentais para o cotidiano da saúde pública no Brasil, inclusive a compra de testes durante a Covid-19. A eventual retirada da OPAS de nosso território seria um golpe duro para a governança da saúde no Brasil, que já não existe mais no plano federal, mas tem sido conduzida pelos governos estaduais e municipais.

E quais seriam os resultados práticos para a OMS?

A OMS funciona a partir de um delicado equilíbrio entre os interesses de seus 194 Estados Partes, com um financiamento módico em relação a outras agências internacionais rivais (como o Banco Mundial ou mesmo o Fundo Monetário Internacional). Desde sua origem ela abriga o que chamamos de paradoxo constitutivo da saúde global, que é a tensão permanente entre a consagração dos interesses econômicos dos países desenvolvidos, e mais tarde também das grandes corporações transnacionais e fundações filantrópicas, e a proteção da saúde das populações.

Foi o Brasil quem propôs, juntamente com a China, a criação da OMS, na Conferência de São Francisco, em 1945; durante 20 anos a OMS teve um Presidente brasileiro, Marcolino Candau (1953-1973). Especialmente nas últimas duas décadas o Brasil liderou iniciativas importantes e formou alianças que contribuíram para reduzir o predomínio dos interesses dos mais ricos na governança global da saúde - por exemplo, realizando reuniões paralelas dos países membros da Unasul para coordenar posições mais favoráveis à região durante as Assembleias Mundiais da Saúde. O Brasil chegou a sediar o Instituto Sul-americano de Governo em Saúde, o Isags, no Rio de Janeiro, que foi extinto no ano passado, e que considero a mais importante iniciativa de integração regional que o subcontinente foi capaz de realizar.

Pouca gente lembra que o Brasil presidiu o Conselho Executivo da OMS, seu principal órgão de administração, entre 2018 e 2019. Os brasileiros em geral não sabem disto, mas o Brasil é uma referência internacional em saúde pública, e seus sanitaristas são respeitados no mundo inteiro. No entanto, a partir de 2019 o Brasil abandonou sua posição de líder do mundo em desenvolvimento com uma variada pauta de atuação para seguir um alinhamento automático com os Estados Unidos, focado em uma agenda de costumes ultraconservadora, absolutamente avessa aos interesses nacionais brasileiros, que combate às políticas de saúde pública relacionadas a gênero e aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

Neste particular, não deixa de ser uma alívio para a OMS que Estados Unidos e Brasil deixem a organização, eis que sua retirada enfraquece a aliança ultraconservadora que vinha se ampliando no campo da saúde global.

O governo Bolsonaro ameaça sair da OMS, mas almeja entrar na OCDE. Há uma incongruência entre essas duas atitudes e, se sim, por quê?

Do ponto de vista de quem governa para um grupo restrito de empresários, e que pretende aparentar uma boa performance econômica aos olhos deste setor, não há incongruência, eis que a OMS tem como função precípua coordenar a atuação internacional em matéria de saúde pública. O atual governo federal já demonstrou cabalmente que a saúde pública não faz parte de suas preocupações.

Como a senhora avalia a confusão que o governo brasileiro está fazendo com a divulgação de novos casos e óbitos por covid-19? Há uma relação com a ameaça de abandonar a OMS?

Os Estados que fazem parte do Regulamento Sanitário Internacional, como o Brasil, assumem a obrigação de fornecer informações à OMS, inclusive número de casos e de óbitos. A clara intenção de adulterar e/ou ocultar dados sobre a Covid-19 não é por certo compatível com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

Mas acredito que esta prática ilegal é sobretudo motivada pela carnificina que está em curso e infelizmente aumentará nas próximas semanas, demonstrando a completa inépcia do governo federal, a respeito da qual já se discute internacionalmente a possível configuração de crime contra a humanidade.

Qual é a importância de se ter dados confiáveis sobre o número de casos e óbitos e o que a falta de transparência nesse quesito representa para a imagem internacional do país?

Quando há suspeita sobre a confiabilidade dos dados de saúde pública de um país os prejuízos sobre o tráfego internacional de pessoas e mercadorias são imediatos. Não apenas a imagem do Brasil, mas seus interesses econômicos e políticos são duramente atingidos. Até o suposto grande aliado internacional do atual governo federal, o Presidente dos Estados Unidos, restringiu o ingresso de brasileiros em seu território. Serão tempos muito difíceis para os cidadãos e as empresas brasileiras com atuação internacional.

De que maneira a divulgação de dados pouco confiáveis no Brasil afeta os esforços globais para combater a pandemia?

O Regulamento Sanitário Internacional permite que a OMS colete dados de outras fontes além das oficiais, o que significa que a carnificina ocorrida aqui continuará repercutindo no plano global, com o dano adicional de que não se pode mais confiar no Estado brasileiro.

O argumento usado pelo presidente americano Donald Trump e por Bolsonaro de que a OMS é partidária ou foi conivente com a falta de transparência da China no início da pandemia tem algum fundo de verdade?

Não tem fundo algum de verdade. A OMS não tem poderes para punir um Estado que não presta informações ou que não atende às suas recomendações. O primeiro boletim da OMS sobre o novo coronavírus data de 5 de janeiro e já noticia a existência de uma forma de pneumonia em Wuhan de fonte desconhecida. Há novos boletins ao longo de janeiro e no dia 23 a OMS já adverte os Estados de que eles precisarão implementar medidas de testagem massiva e quarentenárias, entre outras. Em 30 de janeiro ela declara a emergência internacional e passa a compartilhar todas as informações que possui em tempo real.

A Direção Geral acertou em não buscar uma política de confronto com a China que teria dificultado ainda mais o combate à pandemia. Lidar com um regime ditatorial poderoso como a China não é uma tarefa simples para uma organização internacional com poucos recursos financeiros e com a enorme responsabilidade de coordenar a ação internacional na resposta à pandemia. Há mais de 20 anos a OMS alerta os Estados sobre o risco de pandemia, e elabora planos de contingência de excelente qualidade, amplamente compartilhados.

Um deles é um guia extraordinário sobre comunicação de riscos durante emergências, publicado até em português em 2018. Em outras palavras, o alerta existe há anos e líderes como Barack Obama eram sensíveis a ele - criou, por exemplo, a agenda para segurança da saúde global (GHSA)em 2014. Mas o negacionismo ressurgiu com força desde que Trump chegou ao poder. Entre muitas medidas nefastas, ele fechou o escritório de GHS na Casa Branca, cortou o orçamento de saúde global e reduziu a autonomia dos CDCs.

À parte as acusações feitas por Trump e Bolsonaro, a OMS cometeu erros na coordenação internacional da resposta à pandemia do novo coronavírus? Quais foram?

Não acho que a OMS tenha cometido erros até o momento. As idas e vindas em certas recomendações são normais para quem age com base em evidências científicas que estão sendo produzidas à queima-roupa. Sendo uma doença nova, também se aprende o que funciona ou não no mesmo momento em que se faz. Sem as décadas de experiência, a rede de contatos e os protocolos da OMS este momento estaria sendo ainda mais difícil.

Há dezenas de países que dependem exclusivamente da OMS para a resposta à Covid-19 pois não possuem sistemas nacionais de saúde estruturados. Em outra gestão o Brasil teria certamente se destacado como exemplo positivo de resposta graças ao SUS, com grande potencial de difusão internacional de nossas estratégias. Mas o que aconteceu infelizmente foi o contrário: somos exemplo de grave incapacidade de gestão.