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Felipe Moura Brasil

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Verdades incômodas

A filósofa alemã Hannah Arendt - picture-alliance/dpa/UPI
A filósofa alemã Hannah Arendt Imagem: picture-alliance/dpa/UPI

Colunista do UOL

03/08/2021 04h00

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A escritora e colunista americana Mary McCarthy e o filósofo e psiquiatra alemão Karl Jaspers permaneceram ao lado de Hannah Arendt quando amigos deram as costas para a autora de "Eichmann em Jerusalém - um relato sobre a banalidade do mal", por ela ter retratado no livro o oficial nazista Albert Eichmann como um insosso burocrata que estava simplesmente cumprindo ordens ao exterminar judeus na câmara de gás.

"Não posso mais confiar em mim mesma para manter a calma e não explodir. Como é arriscado dizer a verdade no plano factual, sem ornamentos teóricos e acadêmicos", desabafou Arendt com McCarthy em setembro de 1963, quando a campanha negativa contra ela já durava meses. Em outubro, a americana esboçou uma explicação para os ataques à amiga alemã e judia que havia fugido do nazismo para os EUA: "Parece que em Nova York o desejo de causar sensação passou a ter precedência sobre tudo o mais. O mundo literário e intelectual está se transformando numa série de espetáculos, como aquele da Conferência de Teatro de Edimburgo, onde uma garota nua foi levada ao auditório. Os editores se tornaram animadores, e o leitor já é um espectador de circo."

Jaspers, que fez até um texto introdutório ao livro por ocasião de sua publicação na Alemanha, também escreveu para Hannah: "Já que você atingiu o ponto mais sensível de tantas pessoas, a mentira de sua existência, elas odeiam você... A verdade é espancada até a morte, como disse Kierkegaard sobre Sócrates e Jesus Cristo. Bem, a esse ponto não chegou, e não chegará. Mas você ganhou uma fama que lhe é completamente imprópria, abominável. A longo prazo, é claro que seu caráter prevalecerá e terá um triunfo glorioso."

Os relatos estão em "Arendt - Entre o amor e o mal: uma biografia", da escritora sueca Ann Heberlein, para quem Jaspers, "sem dúvida", "estava certo". "Hannah escreveu sobre Adolf Eichmann não porque o considerasse uma pessoa exemplar, mas porque quis entendê-lo e seus motivos", observa a biógrafa, frisando que "compreender não é a mesma coisa que desculpar e certamente não é sinônimo de perdoar". Para ela, a "verdade incômoda" é que "há seres humanos com uma infeliz tendência de seguir a lei da menor resistência, bloquear a voz da consciência e fazer o que todo mundo faz. Diante da normalização da exclusão, da perseguição e do extermínio dos judeus, os que protestaram, que ouviram sua consciência, foram muito poucos."

"O grande problema", conclui Heberlein, distinguindo culpados e responsáveis, "não são as poucas pessoas que escolhem fazer o mal; são todas as pessoas que não escolhem, que não se posicionam sobre ser más ou boas, sobre contribuir para o mal ou para o bem. Foi a indiferença da grande massa, sua abdicação de responsabilidade, que possibilitou o Holocausto, não a crueldade de um pequeno número de pessoas más."

Durante a apuração da CPI da Pandemia sobre as responsabilidades pela morte de 550 mil brasileiros por Covid-19, o senador Alessandro Vieira comparou o comportamento maquinal de Eichmann ao do ex-ministro Eduardo Pazuello, que cumpria ordens de Jair Bolsonaro na gestão marcada pelo boicote às vacinas: "Ele (o oficial nazista) não possuía histórico ou traços preconceituosos, não apresentava características de um caráter distorcido ou doentio. Ele agiu segundo o que acreditava ser seu dever, cumprindo ordens superiores e movido pelo desejo de ascender em sua carreira profissional, na mais perfeita lógica burocrática. Cumpria ordens sem questioná-las com o maior zelo e eficiência, sem refletir sobre as consequências que elas pudessem causar." Para Vieira, "no exercício de uma política de saúde, o senhor (Pazuello) falhou. E tenho absoluta convicção de que não falhou por decisão sua."

Ninguém precisa incorrer na falsa equivalência geral entre nazismo e bolsonarismo para compreender a descrição feita por Arendt, Heberlein e Vieira do bloqueio cognitivo e moral da suposta consciência durante o cumprimento de ordens danosas à saúde e à vida de um povo, seja qual for a natureza (cruel e/ou burra) de quem ordena. Esse bloqueio até hoje ajuda na conquista de boquinhas e previne contra retaliações à dissonância.

Na vida intelectual, permanece também o risco de dizer a verdade no plano factual, sem ornamentos teóricos e acadêmicos, porque, na civilização do espetáculo, com redes sociais, o leitor desprovido da serenidade de McCarthy e Jaspers já é um espectador de circo e odeia sobretudo quem atinge a mentira não só de sua existência, mas também a de seu político de estimação, seja ele um sabotador da saúde pública, como Jair Bolsonaro, seja ele um notório defensor da ditadura cubana, como Lula, seja ele qualquer outro negacionista de rachadinha ou suborno.

Nesses casos, a verdade atualmente é espancada pelas claques de ambos os lados até a morte virtual de seus disseminadores - que, no entanto, não chegou, e não chegará.

Sejam bem-vindos à minha nova coluna.