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Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Inércia no Itamaraty tem raízes na centralização decisória do Planalto

O presidente Jair Bolsonaro participa de evento com os presidentes dos países do BRICS. - Pedro Ladeira/Folhapress
O presidente Jair Bolsonaro participa de evento com os presidentes dos países do BRICS. Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

Colunista do UOL

01/04/2021 04h00

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A substituição de Ernesto Araújo por Carlos Alberto França na liderança do Ministério das Relações Exteriores ressoou internacionalmente e animou interlocutores estrangeiros no mundo todo. Por aqui, no entanto, analistas e diplomatas reagiram à notícia com relativo ceticismo. A aposta é que haja mais mudanças de forma do que propriamente de conteúdo na condução da política externa brasileira - o que tem a ver não necessariamente com as credenciais do novo Ministro, mas com os constrangimentos impostos pelo ambiente decisório no qual ele estará inserido.

Na transição Araújo-França seria exagero falar em "mais do mesmo". Embora ambos sejam considerados, pelo plano de carreira, jovens embaixadores que não acumulam no currículo a experiência de conduzir uma Missão no exterior, França definitivamente não é Araújo.

Classificado por muitos como um oportunista de momento, Araújo converteu-se ao bolsonarismo depois de ter, no passado, defendido ideias bastante diferentes dessa cartilha. O ex-Chanceler tornou-se obcecado pela "salvação do Ocidente" e pelo "cruzadismo anti-globalista". Como Ministro, prestou-se ao propósito de emprestar legitimidade intelectual e conferir algum verniz para o ideário olavista mais vulgar. Acabou como um dos interlocutores vocais da ala ideológica dentro do governo.

França, ao contrário, é um diplomata de perfil discreto. É considerado moderado e reflete melhor o mainstream do Itamaraty, embora tenha se aproximado muito do presidente nos últimos meses. Também é visto como uma figura politicamente mais habilidosa do que seu antecessor. Como chefe do cerimonial teve amplo acesso a diplomatas e autoridades, transitando nesse meio com mais fluidez. Por ter dedicado parte de sua vida profissional à iniciativa privada, conhece ainda, desse ponto de vista, os meandros da negociação com grupos de pressão e a dinâmica dos jogos de poder.

Se, por um lado, há, com a substituição Araújo por França, a promessa de um novo "modus operandi" na condução dos trabalhos do Ministério das Relações Exteriores, por outro lado, a sensação de que estamos diante de um "museu de grandes novidades" se explica na medida em que as engrenagens que movimentam as decisões parecem não ter efetivamente se alterado.

Uma das grandes lições do estudo da política externa está em reconhecê-la como uma política pública complexa e porosa aos interesses que permeiam os processos de barganha. Decifrar, portanto, a "política da política externa" é um ponto chave para compreender como se formam as preferências e diretrizes de um Estado. Ademais, estudar política externa implica reconhecer que a inserção internacional de um país começa com a definição de uma orientação mais ampla e de seus objetivos principais, para somente depois pautar políticas e ações específicas.

No processo decisório do governo Bolsonaro a concepção da política externa tem repousado sistematicamente sobre as crenças e visões de mundo do próprio presidente e de seus conselheiros mais próximos. O risco desse sistema é que ele pode deixar a cargo de França e dos diplomatas brasileiros apenas as etapas de instrumentalização e de implementação da política externa, mas não propriamente a sua formulação.

A obstinação por reafirmar autoridade e concentrar poder tem sido uma marca da gestão Bolsonaro e pautou decisões sobre vários Ministérios no último ano: aconteceu na Saúde, na Justiça e Segurança Pública, na Educação e, mais recentemente, na Defesa. Em todos os casos, o presidente movimentou-se no sentido de cercar-se de figuras sobre as quais tivesse ascendência e controle direto. O que todos os Ministros escolhidos têm em comum, além de estilo não confrontacionista, é que, subordinados a uma estrutura rígida de comando, desfrutam de baixa autonomia.

É comum, na literatura especializada, nos depararmos com a visão de que o Brasil costumava operar a partir de um modelo essencialmente burocrático quando o assunto é a formulação de sua política externa. Isso porque, ao longo da maior parte de nossa história, coube ao Itamaraty, como instituição especializada, o reconhecimento da legitimidade para pautar o debate nesse campo. Em alguns momentos, essa leitura ficou tão presente que deu lugar a uma discussão sobre os riscos de um processo de formulação profundamente insulado, já que, nesse tipo de estrutura, os atores podem não estar abertos às demandas de fora por presumirem que eles próprios têm a capacidade de tomar todas as decisões sem submetê-las a terceiros. Os mais críticos desse sistema defendiam, por essa razão, a migração para um modelo do tipo "organizacional", em que o processo de formulação fosse permeável aos interesses de diversos stakeholders na tentativa de construir consensos mais representativos e democráticos.

Hoje, no entanto, parece que não estamos operando por nenhum dos dois modelos. Teríamos migrado para um sistema simplificado que tem foco no líder e em figuras pontuais que centralizam o processo de formulação da política externa e reconhecem que a sua legitimidade vem do processo eleitoral e não necessariamente do conhecimento que possuem sobre o tema. No caso de Bolsonaro, uma livre interpretação cognitiva levaria a caracterização de um perfil controlador, com elevada necessidade de afiliação, baixa complexidade conceitual e grande desconfiança em terceiros.

Sem surpresa, portanto, a chegada de França vem acompanhada de algum ceticismo. O presidente seguirá pautado por um núcleo restrito de pessoas em quem deposita fé, principalmente Eduardo Bolsonaro e Filipe Martins. Vale observar, ainda, o papel a ser desempenhado pelo próprio Ernesto Araújo, que deixa o cargo, mas não necessariamente perde influência sobre o Planalto.

Além disso, na estrutura do Ministério das Relações Exteriores movimentos como a tentativa de promover Pedro Wollny, Chefe de Gabinete do ex-Chanceler, à Secretaria Geral do Itamaraty corroboram a visão de que há interesse por continuidade. O Chefe de Gabinete é visto não só como o braço operacional do Ministro, mas como o curador de tudo o que passa pela pasta. É o responsável por definir, em um primeiro momento, o "agenda-setting" das prioridades do Ministério.

Por fim, em pautas altamente sensíveis do ponto de vista internacional para o Brasil nesse momento, como meio-ambiente e gestão de saúde pública, não há acenos ou sinais de quaisquer mudanças significativas.

O dito popular apregoa que "papagaio que acompanha João-de-Barro vira ajudante de pedreiro". É o risco que corre o novo Ministro.