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Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Importar discurso da "China como ameaça" não interessa ao Brasil

Jair Bolsonaro e o presidente chinês, Xi Jinping, em evento do G20 - Mikhail KLIMENTYEV / AFP -  28.jun.2019
Jair Bolsonaro e o presidente chinês, Xi Jinping, em evento do G20 Imagem: Mikhail KLIMENTYEV / AFP - 28.jun.2019

Colunista do UOL

13/05/2021 12h15

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No início do século 21, a China ampliou expressivamente a sua presença na América Latina, uma região apresentada desde a Doutrina Monroe como a "área natural de influência" dos Estados Unidos. Desde então, ocorreu uma ampliação significativa nos fluxos de comércio e investimento entre esses países, além de uma série de movimentos diplomáticos e institucionais.

No caso brasileiro, em particular, a China ultrapassou os Estados Unidos como principal parceiro comercial ainda em 2009 e tem mantido essa posição desde então. Os chineses são os responsáveis por absorver mais de 30% de nossas exportações totais, transpondo a casa dos US$ 100 bilhões em compras a cada ano, nos últimos anos. Além disso, a China está entre as principais fontes de investimento estrangeiro direto no Brasil, atuando prioritariamente nos setores de energia e mineração, siderurgia e no agronegócio.

Não à toa, os três últimos presidentes brasileiros visitaram a China antes de voarem ao Japão, por exemplo, e se preocuparam em inclui-la como um parceiro prioritário em seus discursos inaugurais. Tentaram, por mais de uma década, conferir o máximo de pragmatismo ao relacionamento bilateral e extrair dele oportunidades de desenvolvimento para o Brasil.

No atual governo, no entanto, a relação é marcada por incertezas. Após reiteradas insinuações de autoridades brasileiras em torno das origens do coronavírus, de críticas às vacinas produzidas na China e da tentativa de barrar a participação da Huawei na disputa do 5G, o governo deixou de lado a preocupação em acomodar interesses concretos para fazer coro ao discurso de que "a China é uma ameaça".

Importada do Norte, essa é uma narrativa que convém às potências estabelecidas - e, particularmente, aos Estados Unidos - no contexto de uma disputa hegemônica. Ela faz sentido, do ponto de vista estratégico, aos norte-americanos, que veem-se acuados pelo consistente crescimento econômico chinês, no contexto de uma ambígua relação de interdependência comercial e financeira.

Além disso, com as mudanças da matriz produtiva do país, a China deixa de ser um mero exportador de manufaturados de baixo valor agregado para disputar mercados, com os Estados Unidos, no campo da alta tecnologia e da inteligência artificial. Complementarmente, a presença chinesa mundo afora amplia sua rede de contatos, aumentando as fontes disponíveis de financiamento e, por consequência, a dependência de dezenas de países no longo prazo. Por fim, assombra os entusiastas da "ordem internacional liberal" pela possibilidade de, em determinado momento, tornar-se uma potência contestadora das estruturas existentes.

Apesar disso tudo, tanto na relação Estados Unidos-China quanto na triangulação com a América Latina, engana-se quem pensa que os norte-americanos necessariamente tratam os chineses com hostilidade. Ao longo das últimas décadas, os estudos mostram que, nos dois casos, prevalece uma doutrina denominada de "congagement", que combina períodos de maior propensão ao conflito com períodos de maior propensão à cooperação.

As políticas de confronto ou de acomodação da China, neste contexto, não são definidas arbitrariamente ou orientadas apenas para o consumo doméstico e a energização do eleitorado norte-americano. No caso da América Latina, elas estiveram condicionadas à percepção de ameaça trazida pela China em sua ação regional e à identificação dos benefícios potenciais obtidos pelos norte-americanos no processo de intensificação da interação entre chineses e latino-americanos.

Nos últimos anos, a caracterização desse cenário tem dependido, na prática, de cinco fatores específicos:

  1. se o envolvimento mantido pela China na região é predominantemente comercial ou se também envolve aspectos estratégicos e militares;
  2. se a China gera engajamento político com os países latino-americanos ou não
  3. se a presença chinesa contribui para o desenvolvimento econômico da região e ajuda a reduzir, portanto, tensões sociais;
  4. se a China incentiva ou restringe uma "agenda econômica liberal" na América Latina;
  5. como sua presença afeta as instituições e os valores da ordem existente (incluindo a triangulação com lideranças resistentes aos Estados Unidos na região).

Isso deixa claro que mesmo onde o apelo de "China como ameaça" faz algum sentido, como é o caso dos Estados Unidos, em que há disputas objetivas em jogo e/ou identifica-se a falta de consensos, há uma busca permanente por equilíbrios.

Isso posto, é importante reconhecer que a importação do discurso da "China como ameaça" de forma acrítica revela não só um olhar obtuso, como configura um grave erro de cálculo para os interesses nacionais. Mesmo que esse fosse o caso, há outros meios mais inteligentes de balanceamento de poder do que o discurso inflamado. Até o momento, a narrativa da "China como ameaça" não se aplica ao Brasil. Aqui, aliás, a China tem sido mais parte da solução do que dos problemas.

Como diria Cícero, já na Roma Antiga, "prudência é saber distinguir as coisas desejáveis das que convém evitar". Com a China é preciso ser prudente.