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Fernanda Magnotta

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

CPI da Covid confirma que falta competência ao Brasil no combate à pandemia

Ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo presta depoimento à CPI da Covid - Jefferson Rudy/Agência Senado
Ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo presta depoimento à CPI da Covid Imagem: Jefferson Rudy/Agência Senado

Colunista do UOL

20/05/2021 04h00

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Nicolau Maquiavel nasceu e viveu na Florença do século XV. Em plena Renascença, conviveu com a fragmentação da Itália pré-unificada e com a sombra da instabilidade permanente. Desafiado pela conjuntura de sua época, tornou-se o mais importante autor do pensamento político moderno.

Maquiavel teve parte de seus escritos indexados pela Igreja ao longo da História. Isso porque negava os desígnios divinos, na medida em que, para ele, a ordem deveria ser entendida como uma construção humana e não como obra do destino ou do acaso.

Ao ter proposto uma reinterpretação da política como resultado de feixes de força e da ação dos indivíduos em sociedade, Maquiavel trouxe à tona a ideia de que, como atividade fundamentalmente humana, a política exige o domínio das circunstâncias. A sorte, seja ela favorável ou não, estaria sujeita, portanto, à "virtù" dos líderes, ou seja, à sua capacidade para lidar com o imprevisível.

O líder virtuoso, sob a ótica de Maquiavel, deve possuir coragem e respeitabilidade, além de competência para lidar com os desafios da vida política. A virtù, segundo ele, é o que conduz a criação de boas leis e instituições. Por meio dela, é que se torna possível administrar, com maturidade e eficácia, as ocorrências fortuitas que se apresentam diante dos governos.

Se, por um lado, a pandemia de Covid-19 se impôs como uma surpresa igualmente mal-afortunada para todos os países no século XXI, a capacidade de gerenciá-la certamente fez de algumas experiências mais bem-sucedidas do que outras —o que faz de Maquiavel mais atual do que nunca.

Enquanto a Europa reabre suas fronteiras e os Estados Unidos liberam o uso de máscaras em ambientes abertos e fechados, o Brasil revisita, a cada nova sessão da CPI da Covid, um capítulo de sua história de fracassos na gestão da crise pandêmica. Somando mais de 400 mil mortos e com prospecções tenebrosas para os próximos meses, a vacinação segue lenta e os recursos continuam escassos.

Desde abril, quando a Comissão Parlamentar de Inquérito foi instituída para investigar a atuação do Executivo no enfrentamento da pandemia, temos testemunhado mais do que o retrato de uma crise inesperada, mas os efeitos gerados por um misto de negacionismo e incompetência.

O resumo dos depoimentos das últimas semanas é avassalador. Tanto o ex-ministro Mandetta quanto o diretor da Anvisa Barra Torres relataram o interesse do governo de mudar a bula da cloroquina para incentivar o seu uso, ainda que sem comprovação científica. Carlos Murillo, executivo da Pfizer, confirmou que houve pelo menos seis tentativas por parte da empresa para vender imunizantes ao Brasil. O ex-secretário Wajngarten expôs que uma das propostas de vacina da Pfizer ficou por 2 meses sem resposta.

No meio do caminho, surgiram insinuações de que o governo deslegitima as estruturas especializadas, adotando, no lugar disso, uma rede de "aconselhamento paralelo" ao próprio Ministério da Saúde. Por fim, os depoimentos do ex-chanceler Araújo e do ex-ministro Pazuello podem ser vistos como uma afronta à inteligência e à sanidade dos brasileiros.

Araújo afirmou jamais ter fomentado a discórdia com a China, disse não ter dificultado a adesão do Brasil no caso do consórcio da OMS (o "Covax Facility"), defendeu que não houve alinhamento com o governo Trump na condução da pandemia, e que não vê excessos na negociação de cloroquina no exterior, pedido que, inclusive, atribuiu ao Ministério da Saúde.

Enquanto esteve no cargo, porém, referiu-se publicamente ao coronavírus como "comunavírus" e acumulou desavenças com o embaixador chinês no Brasil, a quem, inclusive, solicitou um pedido de retratação após tensões com o deputado Eduardo Bolsonaro. Araújo dirigiu múltiplos ataques à OMS e fez do Brasil um dos últimos países a aderir ao Covax Facility, com quota mínima de participação, além de tudo. Usou o ministério para negociar cloroquina com a Índia e recebeu 2 milhões de unidades desse medicamento dos Estados Unidos no contexto em que testes clínicos já sinalizavam sua ineficácia.

Pazuello, por sua vez, descreveu um Brasil fictício. Negou as aparências e disfarçou as evidências. Protegido por um habeas corpus, aproveitou para tentar blindar também o presidente da República. Contrariou inúmeras manifestações anteriores. Deu trabalho às agências de checagem de fatos, que se esbaldaram denunciando as inverdades que proferiu diante dos senadores. Ao ser perguntado sobre as razões que teriam levado à saída do cargo, disse que deixou a pasta porque estava com a "missão cumprida". A despedida de Pazuello, em março desse ano, veio acompanhada da marca de 300 mil mortos por causa da covid-19 no Brasil.

A pandemia, na roda da "fortuna" de Maquiavel, de fato golpeou a todos os países com a mesma força. Devastou e deixou marcas mundo afora. Mas, no caso brasileiro, foram as decisões erráticas, produzidas em um contexto de profunda descoordenação das instituições e em meio a um descaso generalizado, que colocaram o país entre as mais mal fadadas governanças de que se tem notícia.

Maquiavel tinha toda razão quando disse que a vida política tem a ver com resistir aos golpes de sorte. Tinha razão em preocupar-se com o imponderável. Mas, acima de tudo, tinha razão ao afirmar que somente uma parcela do que vivemos é produto do aleatório, já que boa parte do que experimentamos é resultado da nossa própria habilidade em domar o acaso. Maquiavel segue vivo. Resta saber o que será de nós.