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ONU cobra Cuba sobre denúncias de trabalho forçado de médicos no exterior

Médico cubano enviado pelo Mais Médicos, Rigal Sola Perdomo realiza atendimento num posto de saúde do povoado de Lindo Horizonte, em Anagé (BA) - Mário Bittencourt/UOL
Médico cubano enviado pelo Mais Médicos, Rigal Sola Perdomo realiza atendimento num posto de saúde do povoado de Lindo Horizonte, em Anagé (BA) Imagem: Mário Bittencourt/UOL

Colunista do UOL

12/01/2020 10h03

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Resumo da notícia

  • Relatoras da ONU pedem esclarecimento a Cuba sobre médicos pelo mundo
  • Serviço, que inclui o Mais Médicos, seria obrigatório e com taxa sobre salários
  • Cuba afirma que denúncias são falsas e orquestradas pelos Estados Unidos
  • País caribenho ainda ataca Bolsonaro, retratado como "papagaio" dos EUA

Duas relatoras da ONU enviaram uma carta ao governo de Cuba pedindo explicações sobre a situação de missões de médicos do país. Segundo as especialistas, denúncias por parte de ONGs foram apresentadas a eles e poderiam constituir trabalho forçado.

Numa comunicação no dia 3 de janeiro obtida pela coluna, o governo cubano afirma aos relatores da ONU que tais alegações são "falsas" e que todos os cidadãos recebem seus salários integralmente e podem sair do programa sem represálias.

Cuba chega a citar a decisão do governo brasileiro de acabar com o Mais Médicos como uma manobra do presidente Jair Bolsonaro para atender aos interesses americanos (veja mais abaixo).

Numa carta de 6 de novembro de 2019 e depois de receber dados de ONGs, as relatoras Urmila Bhoola e Maria Grazia Giammarinaro, escreveram para Havana indicando que estavam "preocupadas pelas condições de trabalho e de vida que estariam afetando os médicos cubanos enviados ao exterior".

No texto, os relatores constatam que, entre 2011 e 2015, as missões geraram um aporte de US$ 11 bilhões ao governo cubano. "Sem dúvida, as missões médicas aportaram um tratado médico a um alto número de pessoas que, de outra maneira, não teriam acesso ao serviço de saúde", destacou.

Ainda assim, as relatoras apontam que as denúncias que receberam indicam que os médicos cubanos no exterior estariam "expostos a condições de trabalho e de vida exploradoras, pagamento de salários inadequados".

"Além disso, muitos desses profissionais estariam sujeitos a pressão e monitoramento por parte do governo de Vossa Excelência", disse o texto enviado às autoridades de Havana.

Entre as denúncias recolhidas pelas relatoras está a de que médicos cubanos se sintam "pressionados a participar de tais missões e temem represálias por parte do governo cubano se não participarem". Oficialmente, a participação é voluntária.

As especialistas apontam que, "em muitos dos países que se beneficiam de uma missão de internacionalização, os médicos cubanos não receberiam um contrato de trabalho ou, se recebessem, nem sempre receberiam uma cópia do mesmo".

Cubanos teriam de pagar até 90% do salário ao seu governo

Um ponto fundamental da denúncia se refere ao salário. "O governo de Cuba receberia uma soma de dinheiro dos governos anfitriões e pagaria aos trabalhadores uma parte desses fundos. No entanto, o governo de Sua Excelência reteria uma percentagem significativa do salário pago pelos países anfitriões aos profissionais cubanos que fazem parte de uma missão de internacionalização", alerta a carta.

Em países onde o governo anfitrião paga diretamente ao trabalhador cubano, o trabalhador deve devolver ao governo cubano uma porcentagem do seu salário que aumentaria para 75% ou até 90% do seu salário mensal.
Carta de relatoras da ONU

"Em muitos casos, o salário dado aos trabalhadores médicos não lhes permitiria viver com dignidade; além disso, o governo cubano estaria "congelando" uma parte do salário a que os médicos só podem ter acesso após o seu regresso ao país. Mas, de acordo com a informação recebida, muitas vezes não recebem a quantia total a que têm direito", destacam.

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64 horas de trabalho por semana

Os horários de trabalho também são alvos de preocupação. "Os médicos trabalhariam 48 horas por semana mais 16 horas adicionais de plantão, o que aumenta para um total de 64 horas por semana, muitas vezes incluindo sábados e domingos", indica a carta. "As horas excessivas de trabalho ilustram a exploração laboral a que os médicos cubanos estariam sujeitos no estrangeiro", aponta.

O documento ainda cita o controle do governo cubano sobre os médicos. "A liberdade de circulação dos trabalhadores cubanos no país de destino seria restringida e vigiada por funcionários do governo", indicou. "O direito à privacidade seria limitado pelo controle e monitoramento dos médicos, incluindo comunicação e relações com nacionais e estrangeiros durante missões de internacionalização", constata.

Questões ainda aparecem sobre a liberdade do médico cubano de retirar-se do trabalho no exterior. Se isso ocorre, as relatoras apontam que ele é qualificado como "abandono da missão de um trabalhador civil" nos termos do Código Penal cubano. A pena pode ser de três a oito anos de prisão.

As mesmas sanções são aplicadas aos profissionais que, depois de realizar uma missão no exterior, decidem se estabelecer em outro país. Como resultado, muitas famílias são separadas, o que tem um forte impacto negativo no seu bem-estar. Os médicos considerados desertores não estão autorizados a regressar a Cuba durante oito anos e os familiares que permanecem em Cuba estariam sujeitos a indicações e repercussões de entidades governamentais.
Carta de relatoras da ONU

"Escravidão contemporânea"

A carta cita o caso explícito do programa Mais Médicos, no Brasil. "Como anunciou o vice-presidente do Conselho de Estado, Roberto Morales Ojeda, em fevereiro de 2019, é autorizado o retorno dos médicos que permaneceram no Brasil desde a descontinuação do programa Mais Médicos. No entanto, muitos dos profissionais afetados temem represálias se regressarem a Cuba", indica a carta.

Muitos profissionais relataram receber ameaças regulares de funcionários do Estado cubano nos países de destino e mulheres médicas têm sofrido assédio sexual enquanto participam de missões de internacionalização.

Segundo as relatoras, essa não é uma situação que afeta apenas os médicos. "Outros profissionais, incluindo professores, engenheiros ou artistas, foram alegadamente sujeitos a condições de trabalho e de vida semelhantes", escreveram.

Diante da constatação, as relatoras apontam que "as condições de trabalho relatadas poderiam ser elevadas ao trabalho forçado, de acordo com os indicadores de trabalho forçado estabelecidos pela Organização Internacional do Trabalho". "O trabalho forçado é uma forma contemporânea de escravidão", constatam.

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Cuba nega acusações

Em uma longa resposta no dia 3 de janeiro de 2020, o governo cubano rejeitou as acusações e disse que é "inaceitável que se tente misturar a colaboração médica cubano com o delito de trabalho forçado".

"Também é inaceitável que os procedimentos especiais do Conselho de Direitos Humanos da ONU sejam utilizados para fomentar campanhas espúrias promovidas pelos Estados Unidos", atacou.

Segundo Cuba, as missões são baseadas em acordos com a participação inclusive da OMS. Havana classificou de "absolutamente falsas" as denúncias de pressão sobre os médicos e todos as demais informações que constam da carta das relatoras.

Na resposta, o governo garante que o médico enviado ao exterior recebeu seu salário de forma integral, em Cuba. A liberdade de movimento também estaria garantida. Mas medidas de segurança necessárias para sua proteção podem ser aplicadas.

Havana também insiste que nenhum médico é obrigado a permanecer numa missão e que um eventual retorno não resulta em penas.

A carta ainda trata especificamente do Mais Médicos. "Diante da decisão do Ministério da Saúde [do Brasil] de encerrar o programa Mais Médicos, Cuba não negou, nega nem impede o retorno dos profissionais que ali trabalharam. Muito menos impõe represálias a aqueles que desejam regressar", escreveu. "Todos podem retornar ao território nacional e retomar seus lugares nas instituições de saúde", completa.

A carta é acompanhada por outros dois documentos. Num deles — uma declaração de dezembro de 2019 — o governo cubano argumenta que a ofensiva sobre seus médicos é uma operação organizada por Washington.

O governo dos Estados Unidos vem desenvolvendo, desde o ano passado, uma intensa e injuriosa campanha contra a colaboração médica que Cuba oferece, combinada com a ameaça de sanções contra os líderes cubanos e a pressão contra os Estados receptores para que a dispensem.
Documento do governo de Cuba

Liderado pelo Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, essa operação teria a participação ativa de senadores e congressistas "associados à máfia anticubana na Flórida e de funcionários do Departamento de Estado".

O governo cubano ainda se dirige diretamente ao presidente do Brasil.

"O fascista e servil presidente brasileiro Jair Bolsonaro denegriu e expulsou de fato nossos especialistas médicos que, sob um acordo tripartite com a Organização Pan-Americana da Saúde, de agosto de 2013 a novembro de 2018, realizaram atendimento de 113,3 milhões de pacientes, em mais de 3,6 mil municípios, e proporcionaram cobertura permanente a 60 milhões de brasileiros", aponta Havana.

"Altos oficiais dos Estados Unidos têm usado a calúnia de que as brigadas médicas cubanas na República Bolivariana da Venezuela são tropas militares, que Bolsonaro repetiu como um papagaio, em setembro de 2019, durante seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, replicando ridiculamente, por malícia ou ignorância, a figura mentirosa e infundada usada por Washington", argumenta o documento cubano.

Errata: este conteúdo foi atualizado
As missões geraram um aporte de US$ 11 bilhões ao governo cubano, e não R$ 11 milhões. A informação foi corrigida