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"Vi a banalização da morte", diz sobrevivente de Auschwitz

Paul Sobol, sobrevivente de Auschwitz - Jamil Chade/UOL
Paul Sobol, sobrevivente de Auschwitz Imagem: Jamil Chade/UOL

Colunista do UOL

27/01/2020 12h00

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O belga Paul Sobol tinha apenas 18 anos quando foi levado ao campo de concentração com sua família. Nunca mais viu seus pais. Mas lança um alerta: Hitler não agiu sozinho e sua ideologia persiste.

"Vi a banalização da morte, num esquema industrial de extermínio sem igual". O relato é de Paul Sobol, sobrevivente de campo de concentração de Auschwitz, na Polônia. No dia dos 75 anos de liberação do local, Sobol falou com exclusividade à coluna sobre o que ele viu e sentiu em meses que passou entre prisioneiros.

Sobol nasceu em 1926, de Paris, filho de um polonês. Sua família se mudaria para Bruxelas em busca de trabalho e ali o jovem cresceria. Seus pais não eram religiosos, ainda que ele soubesse que era judeu. Mas primava na modesta casa o trabalho no sindicato e um pensamento socialista. "Não dávamos muita importância para religião", disse Sobol que, horas depois da entrevista, seria o convidado de honra da ONU para discursar diante da comunidade internacional.

A partir de 1940, quando a Alemanha ocupa Bélgica, a situação da família começava a se deteriorar. O garoto Paul tinha 14 anos. Dois anos depois, famílias inteiras começaram a ser detidas pelos nazistas.

"Meu pai sabia que nossa condição de judeus poderia ser um problema e decidiu nos esconder. Do dia para noite, desaparecemos. Passamos a viver os cinco membros da família em um só quarto. Tínhamos novos nomes e documentos", contou.

Durante dois anos, a vida da família Sobol passou a ser das mais discretas. Uma das raras saídas de Paul era para um ginásio onde, aos domingos, fazia esportes. "Ali, ninguém sabia quem eu era", contou. Mas foi ali também que conheceu Nelly, o amor de sua vida.

O destino da casal, porém, ganhou contornos dramáticos quando, em 13 de junho de 1944, a família inteira foi descoberta pela Gestapo. "Dias antes, eu me lembro de ter ouvido pela rádio que os americanos tinham desembarcado na Normandia. Para nós, o final da guerra parecia próximo", disse.

Mas a história não seria exatamente feliz para a família. No dia 31 de julho, eles foram embarcados em um trem, sem sequer saber o destino. "Estávamos de uma certa forma aliviados que tinham nos colocado todos no mesmo vagão", relembra Sobol, hoje com 93 anos.

Três dias e três noites depois, as portas do trem se abriram. "De repente, tínhamos refletores sobre nós e guardas, com cacetete, gritando para que corrêssemos. Rapidamente separaram os homens das mulheres e, naquele momento, foi a última vez que vi minha mãe", disse.

"Vi, naquele momento, a brutalidade diante de mim. Um homem que não queria se separar de sua esposa foi espancado diante de nós", contou.

Instantes depois, mais uma vez os guardas separariam os grupos. Desta vez, os idosos, doentes e crianças de um lado. Do outro, jovens e adultos. Dias depois, Sobol entenderia que essa divisão significava a morte para milhares de pessoas.

Escravos antes de morrer

Instantes depois, aqueles escolhidos para continuar a viver eram ordenados a retirar toda a roupa. "Eu tinha em meu bolso a foto de Nelly e não queria perde-la. Dobrei e fechei em meu punho", disse.

"Sem dar qualquer explicação, um soldado me pegou pela nuca e começou a cortar todos os pelos de meu corpo. Logo depois, agarrou meu braço e marcou: B3635. Aquele era meu novo nome. Estávamos em plena noite e eu não entendia mais nada", relembrou.

Num outro local, Sobol conta que ganhou uma roupa de prisioneiro e foram obrigados a andar por mais de três quilômetros à pé. "Foi naquele momento que vi pela primeira vez o portão com as palavras: Arbeit Macht Frei (o trabalho liberta)", disse. "Não entendi o que havia de relação entre a liberdade e o trabalho e continuávamos sem saber onde estávamos", afirmou.

Nos dias seguintes, ele entenderia que começaria uma nova fase em sua vida. "A educação para tornar-me um bom escravo", disse. "Éramos treinados a ter uma atitude de escravo. Tínhamos de saber saudar os oficiais da SS e dizer nossos números marcados em nosso corpo, em alemão", contou.

"Os primeiros dias fomos espancados, colocados de joelho por horas e tivemos soldados que andaram sobre nossos corpos. Tínhamos de entender que não éramos mais humanos. Antes de morrer, tínhamos de ser escravos sem alma. Nossa vida passada estava esquecida", disse.

Sobol conta que tudo era feito para humilha-los. "Nos davam uma xícara com água suja e dizíamos que era o café para cinco pessoas. Éramos a sub-raça", recorda.

O belga de apenas 18 anos naquele momento havia sido levado com seu pai a um dos pavilhões onde os nazistas guardavam os homens que eventualmente seriam chamados para trabalhar, caso um dos operários morresse. "Éramos peça de recambio", disse, numa referência aos mais de 18 mil pessoas naquela situação.

Sobol lembra que, ainda que os judeus fossem maioria, o local contava com homossexuais, opositores politicos e cigano.

Com o passar do tempo, ele e os demais em sua ala entenderam que dificilmente sairiam dali vivos. "Ninguém achava que conseguiria sair", disse.

Dramático é o relato do sobrevivente sobre o destino de milhões de outras pessoas que, de fato, não eram escolhidas para ser escravos. "Aos idosos, doentes e crianças, diziam que deveriam tomar um banho para não pegar certas doenças. Sinceramente, não havia porque duvidar. Havia um vestiário onde todos tiravam suas roupas e, dali passavam para locais com canalizações que pareciam duchas. As portas eram fechadas. Mas o que caia não era água. Mas gás. 20 minutos depois, todos estavam mortos", disse.

Os locais com os corpos, então, tinham suas portas abertas do outro lado e eram prisioneiros os que deveriam retirar os cadáveres e preparar o local para as próximas vítimas. Imediatamente, dentistas retiravam os dentes de ouro, cabelos eram retirados e médicos olhavam as vaginas para ver não as mulheres não tinham escondido nada.

O passo seguinte era o transporte por tratores dos corpos aos fornos. "Tudo era muito bem estruturado", disse. "Aquele era o campo de extermínio total, mas também havia espaço para experiências médicas e escravidão", contou.

"No fundo, a morte não tinha a mínima importância. Não significava nada. Era o objetivo", insistiu.


Pintura

Sobol acredita que sobreviveu por saber pintar e dar lucros para aquele que deveria vigia-lo. Ele foi levado ao bloco 7 de Auschwitz, onde trabalharia em uma ateliê que prestava serviço aos soldados e civis do regime nazista que estavam na região.

Como não tinha uma profissão, pegou caixas de madeira que outro detento fazia e as pintava. O "chefe" de sua sessão gostou, já que poderia vender aos demais alemães que trabalhavam na região, em troca de cigarro.

"O cigarro era a moeda de troca em Auschwitz. Como eu dava valor ao que o chefe venderia, ele tinha interesse em me manter alimentado. Eu ainda guardava o que podia para entregar ao meu pai, que o via a cada duas semanas nos momentos em que nos víamos", disse.

"Foi assim que sobrevivi, ainda que, e três meses, perdi todos meus músculos e carne. Eu era apenas pele", lembra. "Com uma certa frequência, éramos obrigados a ficar nu e correr diante de médicos. Era o teste para saber se ainda conseguiríamos trabalhar ou se devíamos ser enviados ao gás.

Sobol poderia ter tido o mesmo destino de mais de um milhão de pessoas que perderam a vida no campo de concentração. Mas, em janeiro de 1945, diante do avanço soviéticos, Berlim ordenou que todos os campos fossem evacuados.

"Numa certa noite, fomos chamados a sair e começar a caminhar. Fazia 20 graus abaixo de zero e a neve cobria tudo. Era a caminha da morte. Quem se mostrava frágil era imediatamente fuzilado com uma bala na cabeça. Ninguém vivo deveria ser deixado para trás", disse.

Trens, depois de horas de caminhada, os aguardavam para que fossem levados para campos de concentração na Alemanha. Em seu vagão, apenas um a cada cinco pessoas chegou ao destino vivo.

Eventualmente, com o bombardeio aliado, esses prisioneiros aproveitariam para escapar. E foi isso que o jovem belga fez.


Talismã

Sobol jamais voltaria a ver seu pai e nem sua mãe. Mas nunca perdeu a foto de sua amada, Nelly, uma espécie de . Ele conseguiria voltar para Bruxelas, onde passou a viver na casa de cristãos. Nelly, por sua vez, passou a trabalhar na Cruz Vermelha e, um dia, descobriu que seu amado tinha voltado.

Os dois se casaram e recomeçaram suas vidas, dispostos a esquecer o passado. "Eu precisava cuidar de mim, sair adiante. Além disso, as pessoas não queriam escutar as histórias da guerra", disse. Por 40 anos, ele se manteve em silêncio sobre o que viu em Auschwitz. "Nem a meus filhos eu contava", disse. Paul trabalhou como publicitário e mergulhador amador.

Mas, com quase 60 anos, mudou de postura, certo de que sua história deveria servir de alerta. Nos últimos anos, ele percorre escolas da Europa para contar seu relato, sempre pedindo que os alunos fechem os olhos para tentar imaginar o que foi aquele horror.

"Foi um projeto industrial. Eles tinham plano, método e tudo era estudado para que os resultados fossem obtidos", afirmou.

"Não acredito que um tal projeto industrial volte a ser estabelecido. Mas eu preciso passar essa história aos jovens", disse. "A ideologia nazista sempre vai existir. Ou você acha que Hitler fez tudo aquilo sozinho?", completou.