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Graziano: Fim de auxílio emergencial abriria risco de fome extrema no país

José Graziano da Silva, considerado o "pai" do programa Fome Zero no Brasil - Xinhua/Li Muzi
José Graziano da Silva, considerado o "pai" do programa Fome Zero no Brasil Imagem: Xinhua/Li Muzi

Colunista do UOL

14/10/2020 04h00

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Resumo da notícia

  • Segundo ex-diretor da FAO, sem apoio do governo, Brasil pode repetir cenário que caracterizou continente africano
  • Para Graziano, Brasil voltou ao Mapa Mundial da Fome por conta da crise econômica e do desmonte das políticas sociais
  • Ligado ao Fome Zero, ele anuncia instituto que vai apoiar formulação de políticas de segurança alimentar

Um corte antecipado do auxílio emergencial no Brasil pode abrir o risco de uma crise alimentar similar à das fomes extremas que caracterizaram o continente africano no século passado. O alerta está sendo lançado por José Graziano da Silva, ex-diretor-geral da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) e considerado como "pai" do Fome Zero.

Em entrevista exclusiva à coluna dias depois do anúncio do prêmio Nobel da Paz para o combate à fome, ele deixa claro que existe uma possibilidade real de que o número de famintos no Brasil dobre se o auxílio emergencial for cortado ou o seu valor for insuficiente para comprar a cesta básica, especialmente no caso de se continuar a escalada inflacionária dos alimentos básicos.

Em sua avaliação, o país voltou ao Mapa Mundial da Fome por conta da crise econômica. Mas também como resultado do desmonte das políticas de alcance social, entre elas, a de segurança alimentar e nutricional implantada desde o início dos anos 2000.

Graziano ainda anuncia a criação, no dia 16 de outubro, do Instituto Fome Zero, uma entidade que vai se dedicar a apoiar a formulação de políticas públicas de segurança alimentar, além de preservar a memória do Programa Fome Zero.

Eis os principais trechos da entrevista:

UOL - O Banco Mundial estima que a pandemia vai levar mais 150 milhões de pessoas para a pobreza. Enquanto isso, o Nobel da Paz vai justamente para o combate à desnutrição. A fome, que nunca deixou a agenda mundial, é de novo uma ameaça às sociedades?

José Graziano da Silva - Sem dúvida. David Beasley, Diretor-Executivo do Programa Mundial de Alimentos, já havia antecipado o risco de "uma fome de proporções bíblicas" no início da pandemia antes mesmo de uma segunda onda como a que estamos vendo agora se desenhar depois de curta uma abertura limitada durante o verão nos países do Norte.

Tudo vai depender muito de como será a recuperação da atividade econômica mundial. Vamos lembrar que as previsões iniciais do Banco Mundial e do FMI falavam inicialmente - em abril - em quedas de 3 a 5% do PIB na maioria dos países. Em agosto, essa previsão foi revisada para cima e passaram a falar em até 10%, o dobro das previsões iniciais.

Agora com a segunda onda, a preocupação é como isso vai afetar a recuperação tão desejada em V, que pode ser em L em muitos países, ou em K como estão dizendo para exemplificar o vaivém que parece ser o mais provável no momento, especialmente nos países do Sul.

Mas não podemos esquecer que essa rápida difusão num mundo globalizado terminou afetando desproporcionalmente os mais pobres, os miseráveis, os que não puderam ficar em casa e acima de tudo os que não tinham casa ou tinham um barraco que não permitia o isolamento nem lavar as mãos, porque não dispunham de água encanada. Infelizmente, uma segunda onda vai acentuar ainda mais essas diferenças pois os países mais pobres do Sul têm muito menos recursos financeiros e muitos mais miseráveis que os países ricos do Norte.

O que ocorreu no Brasil é uma prova de que nada está garantido, quando falamos do combate à fome?

Uma política de segurança alimentar e nutricional tem que ser permanente, para garantir uma alimentação saudável a todos. Ela jamais pode ser tratada como uma política temporária, com o objetivo delimitado de erradicar a fome. Tampouco é uma política voltada apenas para os pobres. Todos nós precisamos comer bem todo o tempo, para que possamos levar uma vida saudável.

Como o senhor avalia as políticas sociais hoje no Brasil? Qual é a realidade em termos de políticas de combate à fome?

Elas estão sendo desmontadas, entre as quais a de Segurança Alimentar e Nutricional, apesar de garantidas como políticas de Estado pela norma constitucional que as ampara.

Um pequeno exemplo é o PAA, Política de Aquisição de Alimentos é operada pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) e que permite formar estoques de segurança alimentar (de até três meses de consumo) com os excedentes dos produtos básicos na época de safra, como arroz e feijão, entre outros.

Com isso, é possível evitar as altas repentinas de preços na entressafra ou aumento repentino do consumo. Esse programa chegou a dispor de R$ 2 bilhões no Orçamento da União, mas nos últimos esse valor foi reduzido em dez vezes, passando a contar apenas com R$ 200 milhões. Para não falar da Conab, que está sendo sucateada para ser privatizada - seus armazéns estão sendo fechados ou vendidos.

Com programas de emergência terminando, quais podem ser as consequências sociais e até de instabilidade política nos próximos meses?

Não se pode descartar essa instabilidade. Veja o caso brasileiro: antes da pandemia, essa faixa de pessoas mais vulneráveis já era de 15 milhões. Esse número pode dobrar facilmente se o auxílio emergencial for cortado ou o seu valor for insuficiente para comprar a cesta básica, especialmente no caso de se continuar a escalada inflacionária dos alimentos básicos, como se percebe atualmente.

É fato que o auxílio emergencial melhorou um pouco a distribuição da renda e evitou que mais de 60 milhões de pessoas ficassem sem nenhum rendimento por alguns meses. Por outro lado, um eventual corte do auxilio antes da retomada plena -- que deverá demorar pelo menos até final de 2021, avaliando o cenário mais otimista depois de a vacina imunizar a maioria da população -- poderá incorrer em risco de uma crise alimentar similar a das fomes extremas que tristemente caracterizaram o continente africano no século passado, e também em algumas regiões mais pobres da América Latina.

Tivemos posturas por parte de líderes que insistiam que salvar a renda das pessoas era mais relevante que adotar medidas de distanciamento social. Como o senhor vê esse dilema?

Trata-se de uma falsa questão, pois abstrai que a segunda opção joga com a vida de milhões de pessoas. É o reflexo de quem entende a economia como pure finance e não uma relação social de gente, de poucas pessoas muito ricas com muitos pobres e milhões de miseráveis que dependem do amparo do poder público para sobreviver, ou seja, para ter saúde e alimentação nesse momento de crise.

Vemos supermercados europeus anunciando que não compram mais do Brasil por conta do desmatamento. Há uma mudança na postura dos consumidores no que se refere à alimentação?

Sem dúvida. E eu diria que essa não é apenas a "grande mudança" do momento, mas a mais promissora para um futuro melhor e que realmente pode vir fazer a diferença, pois tem o poder de arrastar outros segmentos como os bancos, por exemplo, e os investidores institucionais que precisam ser, ou ao menos parecer, politicamente corretos, preocupados com a sustentabilidade do planeta.

A crise severa no Brasil transformou a situação social, uma vez mais. O país voltou para o mapa da fome. O que deu errado? E quais são as perspectivas?

É preciso ressaltar que o Brasil voltou ao Mapa Mundial da Fome -- ou seja, passou a ter mais de 5% da sua população em situação de insegurança alimentar grave -- antes mesmo da pandemia.

Isso se deve fundamentalmente a dois fatores: primeiro, a crise econômica que o país já enfrentava e que se traduzia em baixos níveis de crescimento desde 2015 e altos níveis de desocupação e trabalho precário; e segundo, e não menos importante, é o desmonte das políticas de alcance social, entre elas, a de segurança alimentar e nutricional implantada no país desde o início dos anos 2000, e amparada constitucionalmente para garantir a todos os brasileiros uma alimentação saudável.

Para chamar a atenção disso é que estaremos lançando, nesse próximo dia 16 de outubro, o Dia Mundial da Alimentação, o Instituto Fome Zero, uma organização não governamental que vai se dedicar a apoiar a formulação de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional, bem como preservar a memória do Programa Fome Zero que saiu do Brasil para ser referência em vários países da África, América Latina e Ásia, e se converteu no segundo dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030.

O que fará exatamente esse novo instituto?

O Instituto Fome Zero está sendo criado por um grupo de ativistas, estudiosos e pesquisadores que participou na elaboração do Projeto Fome Zero, há exatamente 20 anos, e acompanhou de perto a jornada que logrou erradicar a fome no Brasil. Esse é um momento de reflexão para o qual convidamos toda a sociedade brasileira a participar.

Com a marca permanente da pandemia da covid-19, o atual quadro de esgarçamento social somente deverá se agravar e soluções paliativas não colocarão o país de volta na trajetória da segurança alimentar e nutricional. Mais além de renovar esforços e a mobilização já feita, o Brasil precisa discutir novas ideias e novas propostas para o combate à fome e também à obesidade, igualmente importante. Precisamos que todos voltem a ter assegurados o Direito Humano à Alimentação Adequada, como previsto em nossa Constituição.

Qual o futuro das cadeias de produção agrícola no pós-pandemia? Haverá um consumo local maior?

Creio que ainda é cedo para dizer, pois ao contrário das primeiras previsões, o comércio internacional de alimentos não despencou como em outras crises, como a de 2008-2010. Na verdade, registrou-se um efeito contrário: esse comércio cresceu muito dado o movimento de países -- em particular a China -- de recompor os seus estoques estratégicos de alimentos que foram em grande parte consumidos durante a fase inicial da pandemia. A isso soma-se a forte desvalorização do dólar frente a moedas como o real, por exemplo, que levou à euforia de exportação das commodities que estamos vendo e que deve continuar até a próxima safra.

Por outro lado, as não-commodities, como os produtos frescos, frutas e verduras, que tendem a ter circuitos mais curtos de produção e consumo, terão sua demanda mais dependente da renda disponível das pessoas. E isso vai depender dos programas de transferência de renda vigentes em cada país. Assim, qualquer previsão otimista no sentido de aumentar os circuitos curtos de produção e consumo dependerá muito do que vai se passar na segunda onda que esta se formando nos países do Norte.

Assim, por ora, o que estamos vendo é um aumento generalizado daqueles produtos alimentícios mais "duráveis" nas prateleiras, aqueles mais processados -- para não falar do aumento dos ultraprocessados e de sua consequência imediata, que será o aumento do sobrepeso e obesidade, uma outra pandemia que o mundo ainda não se conscientizou da sua gravidade, nem mesmo quando aumenta as possibiidades de morte com o contágio pelo coronavírus.

Um dos debates mais acirrados hoje se refere ao papel da agricultura no desmatamento. No Brasil, as exportações agrícolas são responsáveis por esse desmatamento?

Mesmo dentro do tão propalado agronegócio, que tem apoio declarado pela própria Ministra da Agricultura, o setor claramente já procura se dissociar daqueles que defendem o desmatamento para expansão da fronteira agrícola dizendo que o Brasil não precisa desse artifício para exportar mais, porque tem seu crescimento baseado na melhoria da produtividade decorrente da incorporação de novas tecnologias.

O que falta ser feito, na verdade, é a condenação explícita desses que desmatam, que são, em sua grande maioria, segundo dizem, puros especuladores fundiários, interessados não em produzir mas em ter mais terras, mais patrimônio, mais reserva de valor. Ou seja, não são produtores rurais, são especuladores imobiliários.

A grande questão política aí embutida é a "solidariedade de classe", que impede que esses poucos sejam identificados e apartados, mesmo sob pena de colocar em risco todos os demais. É difícil cortar na própria carne.