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Jamil Chade

Com Américas e UE doentes, mundo vê centro de gravidade apontar para a Ásia

Os presidentes da China, Xi Jinping, e dos EUA, Donald Trump, durante encontro bilateral no G20 em Buenos Aires neste sábado (1) - Pablo Martinez Monsivais/AP
Os presidentes da China, Xi Jinping, e dos EUA, Donald Trump, durante encontro bilateral no G20 em Buenos Aires neste sábado (1) Imagem: Pablo Martinez Monsivais/AP

Colunista do UOL

24/12/2020 04h00

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Resumo da notícia

  • Ano de 2020 acelerou tendências de transferência de poder para continente asiático

Quando a liderança chinesa se reuniu em agosto para avaliar a situação da pandemia, a constatação de seus líderes foi clara: o país havia demonstrado superioridade em relação a outras partes do mundo sobre como frear o vírus.

O ano de 2020 termina com sinais claros de uma aceleração na mudança do centro de gravidade do planeta, com o poder econômico e geopolítico apontando para a Ásia. Se a China foi alvo de duras críticas pela forma pela qual lidou com a crise em seu início, a falta de transparência e suspeitas de censura e manipulação, ela termina o ano sendo a única grande economia do planeta a ver uma expansão de seu PIB.

Graham Allison, escritor e professor da Universidade de Harvard resumiu de uma forma explícita esse cenário em um recente artigo no Financial Times. "A economia mundial está encolhendo", disse. "Cada grande nação está no caminho para ter uma economia menor até o final do ano - com uma exceção, a China", escreveu. "Este fato brutal é difícil de ignorar. Além disso, já vimos tudo isso antes. Depois de 2008, a China resistiu à tempestade, sua economia cresceu a cada trimestre. Na década que se seguiu, a China foi responsável por um terço de todo o crescimento econômico global", apontou.

Os dados do FMI confirmam essa declaração. Enquanto o mundo terá uma contração de 4,4% em seu PIB em 2020, a China viverá uma expansão de 1,9%. Para 2021, a expansão será de 8,2%.

Pelo mar, na repressão pelas ruas de Hong Kong ou por sua nova rota da seda de US$ 1 trilhão, Pequim dá sinais evidentes de que sua expansão é um projeto real.

Há quem defenda que, no futuro, historiadores designem o mês de maio de 2020 como o momento no início da "aurora do século asiático". A data se refere ao final do impacto mais agudo da pandemia nas economias do Pacífico, enquanto o Ocidente mergulhava numa crise social, política e econômica sem data para acabar. Para o analista e escritor David Goldman, a história "virou a esquina" e a "era da dominação ocidental está acabando".

O fato inquestionável é que o avanço asiático já era uma realidade antes mesmo de a pandemia desembarcar. O continente já detinha mais da metade da população mundial, metade de classe média do planeta e era o maior produtor de carros, brinquedos, móveis, painéis solares e liderava em dezenas de outros setores. Pela primeira vez desde o século 19, as economias asiáticas, juntas, representam mais que o restante da economia global.

No primeiro semestre de 2020, essa tendência ficou ainda mais evidente. Enquanto o mundo rico viu uma queda de 72% em investimentos externos diretos, a China se manteve num patamar estável. De acordo com dados da ONU, um a cada seis dólares investidos no mundo em 2020 foi destinado ao mercado chinês.

Não por acaso, a administração de Donald Trump iniciou uma ampla guerra comercial, na esperança de frear tal avanço. Mas o nacionalismo e isolacionismo pouco serviram e, num ambiente de pandemia, qualquer plano de contenção da China foi minado pelas fragilidades internas das grandes economias.

EUA de joelhos e mais mortes que Segunda Guerra Mundial

2020 foi o ano ainda em que a maior superpotência mundial caiu de joelhos diante de um vírus e de uma busca interna por sua alma. Nos EUA, a crise sanitária matou mais americanos que na Segunda Guerra Mundial. Até o início desta semana, 291,7 mil americanos perderam a vida para a covid-19, contra 291,5 mil na guerra entre 1939 e 1945. Ainda em abril já existiam mais mortes pela pandemia nos EUA que na Guerra do Vietnã e nem os bilhões de dólares injetados pelo governo foram suficientes para frear as mortes diante de uma estrutura falida.

O mundo descobriu a dimensão da pobreza e da injustiça social nas periferias das grandes cidades americanas, incapazes de dar atendimento a minorias étnicas ou marginalizados. A luta contra a vírus foi amplamente politizada e, num ano de eleição, a sobrevivência da democracia esteve em jogo.

A Casa Branca, de uma certa forma, abdicou de sua tradicional liderança internacional, se retirando de organismos internacionais e deixando claro que uma atitude nacionalista havia sido a escolha como forma de barrar o avanço chinês.

A estratégia foi seguida por acusações contra Pequim, um aumento da tensão e uma preocupação por parte da ONU de que o planeta estava caminhando em 2020 para uma "direção muito perigosa" de uma nova Guerra Fria, desta vez entre americanos e chineses.

Uma das maiores consequências da pandemia foi ainda a derrota política de Donald Trump nas urnas. O fato foi recebido nos círculos internacionais como um alívio. Mas os efeitos de 2020 já tinham sido estabelecidos e seu impacto será sentido por anos.

Europa despreparada e doente

Na Europa, os desafios foram outros. Mas também revelaram o despreparo de um continente que insistia ser a base de um sistema de direitos sociais consolidados. Não havia uma estratégia de alertas, de quarentenas, de isolamento e nem leitos de UTIs suficientes.

Informes da OMS sobre a Itália ou investigações sobre o comportamento de outros países revelaram que muitos deles tinham ignorado a dimensão da saúde em seus investimentos por anos. Na Espanha, a disputa política e o enfrentamento por autonomias nas regiões aprofundou a crise, enquanto a solidariedade europeia levou meses para se consolidar.

O ano ainda terminou com as longas filas formadas por caminhões entre o Reino Unido e a França, um espelho de um continente que busca saídas para seus dramas internos e um divórcio caótico do Brexit.

Já a Rússia foi obrigada a reconhecer que seu sistema não deu resposta à pandemia, mesmo diante da censura sobre a divulgação de qualquer obstáculo ou da incapacidade de a sociedade civil ter espaço suficiente para agir contra o poder estabelecido.

Numa caricatura do surrealismo da pandemia, Moscou deslocou militares para ajudar a Itália a combater o vírus, um fiasco de relações públicas para entrar para a história de um ano sem precedentes.

A brutalidade da pandemia silenciou os arsenais e ampliou o que foi interpretado como um mecanismo de autodefesa de certos líderes, negando a gravidade da crise. Sociedades asiáticas, seja por experiências passadas, repressão ou por um sentido mais aguçado de responsabilidade compartilhada, demonstraram maior resiliência.

A realidade é que, em 2020, o processo que havia sido iniciado de uma transferência de poder foi acelerado para o continente asiático.

Num recente esforço de prever o futuro, o professor da Harvard, Joseph S. Nye, desenhou alguns cenários da geopolítica. Num deles, o acadêmico prevê uma "ordem mundial dominada pela China". "Como a China domina a pandemia, a distância econômica entre ela e outras grandes potências muda drasticamente. A economia da China supera a de um declínio dos EUA em meados da década de 2020 e a China amplia sua liderança em relação a competidores potenciais como Índia e Brasil", diz. "Em seu casamento diplomático de conveniência com a Rússia, a China se torna cada vez mais o principal parceiro", avalia.

"Não surpreendentemente, a China exige respeito e reverência de acordo com seu crescente poder. A Iniciativa da Rota da Seda é usada para influenciar não apenas vizinhos, mas parceiros em lugares tão distantes como a Europa e a América Latina. Votos contra a China em instituições internacionais tornam-se muito caros, pois prejudicam a ajuda ou o investimento chinês, bem como o acesso ao maior mercado do mundo. Com as economias ocidentais tendo sido enfraquecidas em relação à China pela pandemia, seu governo e grandes empresas são capazes de reformular instituições e estabelecer padrões a seu gosto", destaca.

Num outro cenário, Nye prevê uma situação em que China e EUA compartilham essa hegemonia.

"Os EUA e a China conseguem cooperar em matéria de pandemias e mudanças climáticas, mesmo quando competem em outras questões, como restrições de navegação nos mares do Sul ou Leste da China. A amizade é limitada, mas a rivalidade é gerenciada", diz. "Algumas instituições murcham, outras são reparadas e ainda outras são inventadas. Os Estados Unidos continuam sendo a maior potência, mas sem o grau de influência que tiveram no passado.

Em qualquer um dos cenários, 2020 foi decisivo. E, em qualquer uma das previsões, o poder no planeta não estará mais apenas sendo ditado pelo Salão Oval.