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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Agronegócio dita tom, agenda e até pavilhão do governo na COP26

e Wanderley Preite Sobrinho, colunista do UOL, e do UOL, em São Paulo

12/11/2021 04h00Atualizada em 12/11/2021 11h19

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"Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça". Foi no embalo da bossa nova que a delegação brasileira na Conferência da ONU para Mudanças Climáticas tentou se apresentar ao mundo, nas últimas duas semanas, num pavilhão criado em Glasgow.

Mas em paredes que apenas imitam uma floresta e enfeites de árvores, a realidade revelava outro cenário: a presença consolidada do agronegócio, tanto na organização do espaço como na agenda de eventos e debates, assim como na postura do Brasil nas negociações.

Na entrada do local, não havia dúvida do envolvimento dos ruralistas. O emblema da CNA (Confederação Nacional da Agricultura) reinava soberano, inclusive acima dos nomes dos ministérios brasileiros. Outra presença clara era da CNI (Confederação Nacional da Indústria).

Foi ali que, nos últimos dias, o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, recebeu delegações estrangeiras para reuniões. Sua agenda, porém, não foi divulgada e, segundo sua assessoria, o motivo do sigilo era "segurança".

Os ministros Fábio Faria (Comunicações) e Joaquim Leite (Meio Ambiente), no estande do Brasil na COP26 - Jamil Chade/UOL - Jamil Chade/UOL
Os ministros Fábio Faria (Comunicações) e Joaquim Leite (Meio Ambiente), no estande do Brasil na COP26
Imagem: Jamil Chade/UOL

Um recente estudo da ONU apontou que as emissões de carbono na agropecuária subiram 17% nos últimos 30 anos e que, hoje, apenas China e Índia contam com volumes superiores aos do Brasil.

Mas, no pavilhão com o logo da CNA, um amplo programa de seminários foi organizado para mostrar uma agricultura sustentável, sempre com o setor privado, bancos, produtores rurais, secretários do governo e ministros. "A agricultura brasileira com certeza será parte da solução", declarou Leite, em um dos eventos acompanhados em grande parte apenas por brasileiros.

No estande, ninguém oficialmente sabia — ou queria — dizer como havia sido o acordo para compartilhar o espaço entre governo e ruralistas. Um dos representantes da CNA pediu que a pergunta fosse encaminhada para Brasília. Na capital, depois de horas de uma solicitação pelo UOL, não houve uma resposta. Tampouco houve uma explicação por parte da CNI, outra patrocinadora do pavilhão.

No governo, o Ministério do Meio Ambiente não respondeu ao email da reportagem solicitando a mesma informação.

Junto com o espaço veio o credenciamento. Representantes do agronegócio e da indústria receberam o mesmo passe para circular que aqueles recebidos pelos negociadores do governo, enquanto a sociedade civil, indígenas, movimento negro e tantos outros grupos ficaram de fora.

Risco de perder exportação foi determinante

O envolvimento dos ruralistas não se limita a pagar por um espaço. Conforme o UOL revelou no início da semana, foi o argumento econômico que convenceu a ala mais extrema do bolsonarismo a adotar um novo discurso na ONU sobre meio ambiente.

O Itamaraty sabia da necessidade de buscar uma nova posição para o Brasil no debate climático, sob o risco de aprofundar seu isolamento. Mas foi buscar um aliado exatamente no setor exportador para convencer o governo a modificar seu discurso.

A lógica era simples: uma imagem ruim do Brasil no mundo levaria a embargos contra produtos nacionais responsáveis pelo desmatamento e até a outros que possam acabar tendo sua imagem contaminada por uma percepção mais ampla sobre o país.

Os exportadores pressionaram por uma mudança de tom sobre o clima e, em setembro, o posicionamento do setor agrícola foi consolidado para o governo. O resultado foi a busca de um novo discurso, capaz de neutralizar parte da pressão no mundo e, assim, evitar barreiras comerciais.

Não existem metas que significam ações imediatas do governo e o Planalto foi convencido que mudar de tom sairia barato, em termos políticos. Já a recusa em agir teria um custo elevado, com o risco de uma ruptura entre setores exportadores e o governo, justamente num ano eleitoral.

Delegação oficial, mas sem movimentos sociais

Se o mundo rural determinou a postura do Brasil em clima, movimentos sociais e ambientalistas destacaram como o pavilhão brasileiro não envolvia a sociedade civil. De fato, apesar de o Brasil ter a maior delegação da COP26 com quase 500 pessoas credenciadas, nenhuma delas vinha de movimentos sociais, entidades ambientalistas ou de indígenas.

Painel com emblemas da CNA e da CNI no estande do Brasil na COP26 - Jamil Chade/UOL - Jamil Chade/UOL
Painel com emblemas da CNA e da CNI no estande do Brasil na COP26
Imagem: Jamil Chade/UOL

Neste ano, de fato, existem dois pavilhões para o Brasil: um deles é oficial, bancado pela CNA e pela CNI, e outro, liderado pelos movimentos sociais.

"Não houve nenhum debate com a sociedade civil sobre qual seria a pauta que o Brasil traria para Glasgow", disse Ana Toni, diretora-executiva do Instituto Sociedade e Clima. Segundo ela, a relação com o Itamaraty não tem sido um problema. Mas houve apenas um encontro rápido no qual o Ministério do Meio Ambiente indicou que teria o seu pavilhão, sem qualquer convite para aderir.

Ana Toni, que é uma das responsáveis pelo espaço alternativo do Brasil na COP26, deixou claro que não ve qualquer problema a presença da indústria no financiamento de um espaço. Mas ela alerta que, junto com a união no pavilhão, o governo distribuiu credenciais apenas para o setor privado, e não para entidades da sociedade civil.

"O governo brasileiro escolheu a dedo quem que eles dariam uma credencial e quem não daria", disse. "Não foi processo democrático ou inclusivo. Por qual motivo dar passes para a CNA e não para a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil)?", questiona.

"O governo abraçou algumas causas e não outras. O que queremos é ter direitos iguais. É importante a indústria ter voz forte. Mas o que ocorreu em Glasgow mostrou que o governo dialoga com uns e não outros", completou.

Ruptura consolidada

Para os movimentos sociais, Glasgow serviu ainda para confirmar que existe uma ruptura entre o governo e a sociedade civil. Em conferências passadas, havia apenas um "espaço Brasil", montado pelo governo e onde debates e o movimento social participavam. Antes de cada evento, o governo realizava consultas para debater a postura do Brasil e ongs nunca tiveram a necessidade de ter outro pavilhão.

Mas o racha começou em Madri, na COP25 em 2019, quando o governo polarizou o debate e decidiu não dar credenciais para sociedade civil.

Para Izabella Teixeira, ex-ministra do Meio Ambiente e chefe da delegação do Brasil na COP em 2015, o pavilhão neste ano sequer pode ser considerado como um "espaço oficial do Brasil". "Trata-se do espaço de parte do setor privado", disse.

Para ela, o espaço "mostra uma imagem deformada do Brasil" e não traz sequer a diversidade do setor empresarial.

O discurso do governo, porém, se misturava ao posicionamento do setor privado. Orgulhoso, Leite usou o pavilhão para anunciar: "a COP26 serviu para trazer o Brasil real". E longe de um enorme segmento da sociedade, o governo insistia com seu slogan em Glasgow: "o ambientalismo de resultado".

Mas, neste caso, só para alguns.