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Josmar Jozino

Rebelião e cadáver no chão: memória do cárcere vira militância de rapper

O rapper Afro-X, então mais um detento do sistema carcerário paulista, preso por roubo em 1994 - João Wainer/Divulgação
O rapper Afro-X, então mais um detento do sistema carcerário paulista, preso por roubo em 1994 Imagem: João Wainer/Divulgação

Colunista do UOL

20/01/2021 04h03

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Em novembro de 1998 quando Cristian de Souza Augusto foi removido para a Casa de Detenção, no Carandiru, zona norte de São Paulo, o presídio tinha capacidade para 3.000 homens, mas abrigava 7.000. Era sexta-feira 13 e ele sentiu na pele as mazelas do sistema prisional paulista. Hoje o rapper, escritor e educador social de 47 é nacionalmente conhecido pelo nome artístico de Afro-X.

Foi conduzido para uma cela superlotada de oito metros quadrados no Pavilhão 8. Na chegada sentiu calafrios ao presenciar um cadáver sendo arrastado pelos pés por outro preso. O xadrez era abafado. Muitos detentos tinham tuberculose. Alguns dormiam em pé por falta de lugar no xadrez.

O rapper continuava na Casa de Detenção — mas então no Pavilhão 7— em 18 de fevereiro de 2001, quando o PCC (Primeiro Comando da Capital) mostrou pela primeira vez sua face ao Brasil. Era domingo, dia de visita.

A facção comandou uma rebelião em série em 25 presídios e em quatro cadeias públicas paulistas. A megarrebelião foi o maior protesto de presos até então realizado no Brasil e teve repercussão mundial. Antes disso, as autoridades consideravam o PCC uma ficção.

A cantora Simony, mulher do rapper à época, estava grávida de cinco meses e tinha ido visitá-lo naquele dia (Ryan hoje é um rapaz de 19 anos). O motim em série deixou 14 prisioneiros mortos —quatro deles na Casa de Detenção — além de 19 agentes penitenciários feridos.

Segundo Afro-X, uma semana antes da megarrebelião, os presos e até os funcionários foram avisados pelo PCC que haveria uma paralisação, um movimento pacífico no sistema prisional, para fazer valer a LEP (Lei de Execução Penal).

"Presos vivem amontados, aglomerados. Nada mudou. Ao contrário, piorou", diz Afro-X - Divulgação - Divulgação
"Presos vivem amontados, aglomerados. Nada mudou. Ao contrário, piorou", diz Afro-X
Imagem: Divulgação
Ecos do massacre do Carandiru

Os detentos reclamavam de superlotação, falta de assistência médica e jurídica, constantes torturas e espancamentos, e ainda maus-tratos aos familiares nos dias de visita e de entrega de jumbo (sacola com mantimentos e produtos de higiene e limpeza). O massacre de 111 presos da Casa de Detenção, mortos por policiais militares em 2 de outubro de 1992, continuava vivo na memória da massa carcerária.

O xadrez de Afro-X ficava no 5º andar do Pavilhão 7 .Foi lá que ele e o parceiro Dexter criaram o grupo de rap 509-E. O nome foi escolhido porque era o número da cela onde ambos moravam.

O motim em série durou dois dias. Parte dos visitantes começou a ir embora no domingo, inclusive Simony. Afro-X viu crianças chorando e mulheres desmaiando. Na terça-feira, a Tropa de Choque da Polícia Militar entrou no presídio e deixou os presos só de cueca. No Pavilhão 7, Dexter levou uma escudada no rosto de um policial e cortou o supercílio. Afro-X recebeu vários chutes, conta.

Dois anos antes antes da megarrebelião, em 1999, eles tinham gravado a música Barril de Pólvora (Linha de Frente). As saídas da prisão para as gravações eram autorizadas pela Justiça.

"Essa letra foi profética. Porque as mazelas continuam até os dias atuais. Encarceramento em massa. Só pretos e pobres da periferia presos. É como um trecho da música, que diz que o Estado só investe na repressão, mas esquece da recuperação dos detentos", ressalta o rapper. O grupo 509-E se dissolveu em 2003 e retomou as atividades em 2019.

O palestrante Afro-X

Afro-X saiu da prisão em 2005. Ele, Dexter e outros artistas egressos, como Vanderley e Claudinho, passaram a ser a voz dos presos em São Paulo. Os dois últimos administram o projeto social "Tantos dias de detenção".

A música, a arte, a literatura e a família ajudaram Afro-X a se recuperar e a abandonar a vida do crime. Hoje ele participa de debates e seminários sobre a problemática do sistema prisional brasileiro. Faz palestras em universidades ao lado de juízes, juristas, psicólogos e cientistas sociais.

Pouco tempo atrás, Afro-X visitou uma prisão de Porto Alegre. A unidade tem capacidade para 1.500 presos, mas abrigava 4.500, o triplo. "É um horror. Presos vivem amontados, aglomerados. Nada mudou. Ao contrário, piorou, ainda mais agora em tempos sombrios de pandemia", comentou.

Nem todos os presos tiveram a mesma sorte e oportunidade de Afro-X e Dexter. Segundo relatório do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), de março de 2020, o índice de reincidência criminal no Brasil é de 42.5%.

O grupo 509-E (@509eoficial) vai lançar no dia 19 de março deste ano a música e vídeo inéditos "A liberdade cantou - 20 anos depois". O local do lançamento não foi definido. "Mas terá relação histórica com o sistema prisional", diz Afro-X (@afroxoficial).