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Leonardo Sakamoto

Da chantagem do general ao caos no Ceará: Brasil vive "Era do Foda-se"

Colunista do UOL

20/02/2020 10h40

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O general Augusto Heleno, aquele que o naco otimista da sociedade achava que seria o contraponto racional a Jair Bolsonaro, conclamou o governo a não ficar "acuado" pelo Congresso Nacional e pediu para o presidente "convocar o povo às ruas", mostrando que a diferença entre ele e Nicolás Maduro pode ser a língua-mãe e a oportunidade.

Não só isso. "Não podemos aceitar esses caras chantageando a gente. Foda-se", afirmou ao ministro da Economia, Paulo Guedes, e ao ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos. A declaração estava em um áudio captado em uma live, em que ele dizia não ser aceitável o Poder Legislativo avançar sobre os recursos do Executivo.

Toda essa situação faz parte de uma estratégia para excitar a militância, ameaçar o Congresso a ceder nos debates sobre o controle do orçamento ou fazer com que Bolsonaro pareça um estadista, uma vez que o presidente aconselhou seus assessores a manterem o diálogo com os parlamentares?

Seria uma péssima estratégia para qualquer mandatário porque declarações como essa aumentam o clima de insegurança e retardam a retomada da economia, com o consequente atraso na geração de empregos decentes. Por mais que um naco dos grandes empresários não se importe se pessoas vivem ou morrem, mas apenas se a Bolsa sobe, seus negócios não estão desconectados deste mundo.

Não foi um lapso do general Augusto Heleno, nem a primeira vez que ele dá uma banana para a democracia. Por exemplo, após o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) sugerir um novo AI-5 caso a esquerda se radicalizasse, em outubro do ano passado, Heleno não demonstrou repúdio, mas disse: "se [Eduardo] falou, tem de estudar como vai fazer, como vai conduzir". O ato institucional, baixado pela ditadura em dezembro de 1968, deu poderes ao Palácio do Planalto para fechar o Congresso, cassar direitos, censurar a população e descer o cacete geral.

Se o Congresso age para reduzir o poder do governo sobre o orçamento, isso diz muito sobre a incompetência do Poder Executivo de negociar com o Congresso Nacional. O que não se restringe à "compra" de voto de parlamentares (como o governo fez com a aprovação da Reforma da Previdência), mas significa dialogar, ceder aqui para conseguir ali. Isso demanda capacidade de fazer Política, com "p" maiúsculo.

O "foda-se" de Heleno se junta ao rosário de "foda-se" que o próprio Bolsonaro cometeu desde que era militar da ativa. Contudo, a morte de Adriano da Nóbrega, chefe do Escritório do Crime e ligado ao gabinete de seu filho, Flávio, quando ele era deputado estadual no Rio, parece ter inaugurado uma fase nonsense. Não há mais pudor para desinformar abertamente.

O clã presidencial tem tentado confundir o público, distribuindo acusações, elaborando teorias conspiratórias e passando pano em biografia de miliciano para tentar tirar o seu pescoço da lâmina preventivamente. Até porque muita coisa pode aparecer quando começarem a investigar os negócios milionários de Adriano no Rio e suas fontes de financiamento. Usam, para tanto, a tática do pombo enxadrista, que faz porcaria no tabuleiro, derruba todas as peças e voa cantando vitória.

Há três anos, alertei que o Brasil estava entrando na "Era do Foda-se", no que fui amplamente repreendido por quem atestava que as instituições estavam funcionando normalmente. Apesar do Congresso e do Supremo Tribunal Federal conseguirem, aqui e ali, aplicar freios e contrapesos constitucionais a comportamentos lunáticos e violentos do governo, o Executivo tem muito poder no Brasil. Ainda mais quando conclama seguidores contra as instituições. O que tem se traduzido até em ameaças de atentados contra ministros do STF.

E o que é a "Era do Foda-se"? Sabe aquele esforço para se preocupar com as consequências das próprias ações e palavras e, no mínimo, manter as aparências? No contexto em que estamos, ele se aposenta ou tira férias, mandando avisar que só dá as caras quando a democracia plena voltar. Até lá, cada autoridade ou membro da elite deste país pode falar ou fazer o que quiser, sem medo da repercussão negativa junto à população. Até porque, convenhamos, foda-se.

Alguns dizem que isso gera uma transparência sem igual na sociedade que nos levará a um patamar superior da existência no futuro e o melhor é tudo acontecer à luz do dia ao invés de se passar nos porões. Há uma falsa dualidade nessa história, como se fossem possíveis apenas duas opções: pessoas que fazem coisas erradas e são sinceras e pessoas que fazem coisas erradas e mentem. Há a alternativa de fazer a coisa certa e ser sincero, mas - pelo visto - essa está no campo da ficção.

Na "Era do Foda-se", policiais milicianos agem para provocar o caos na segurança pública do Ceará, à luz do dia, aterrorizando a população e roubando e danificando propriedade pública, aproveitando-se da sensação de Casa da Mãe Joana dada por um governo federal que não pune agentes de segurança que agem como milicianos. Pelo contrário, os defende mesmo depois de mortos. E um senador da República avança com uma retroescavadeira sobre o portão de um quartel repleto de policiais grevistas amotinados e suas famílias (o que é um absurdo) para, depois, ser covardemente baleado (o que é um atentado à vida de um representante eleito pelo voto e paradigmático da falência do Estado). Surreal demais tudo isso? Foda-se.

O mesmo "foda-se" que acreditamos ouvir quando vemos policiais militares, em São Paulo, espancando dois alunos dentro de uma escola pública, pouco se importando que estão sendo gravados por câmeras de celulares, como aconteceu nesta terça (18).

A Era do Foda-se tem suas consequências, claro. Vendo autoridades darem de ombros para a razão, a população vai deixando de acreditar naquilo que nos mantém unidos como país. E passam a descumprir leis, regras e normas porque percebem que não valem muita coisa mesmo.

Se o presidente da República ataca sistematicamente jornalistas, principalmente as mulheres, por que seus seguidores não podem atacar também?

E, iniciado, o processo de derretimento das instituições e do respeito da população a elas não pode ser freado do dia para a noite. Como já disse aqui, a solução demanda nova pactuação política e social, aliada a muito suor em articulações para a construção de consensos - exatamente aquilo que um governo autoritário tem ojeriza. Porque um governo autoritário precisa do enfrentamento que cria inimigos reais e imaginários para sobreviver.

Naquele momento, quando falei pela primeira vez da Era do Foda-se, ponderei que a reação em cadeia em curso inevitavelmente nos levaria para o buraco, como a eleição, por vias democráticas, de uma figura antidemocrática em 2018 através do voto de uma parte de uma população cansada do clima de "vale tudo" e de "ninguém é de ninguém". Passada essa fase, que, de fato, aconteceu, a questão é se essa reação vai enterrar a própria democracia.

Com isso, o Brasil vai se tornando um palco de batalhas no qual o que importa é quem grita, xinga, ataca, espanca, mata mais. O respeito aos direitos sociais e ao desenvolvimento econômico, objetivos da República, presentes no artigo 3º de nossa Constituição? Foda-se.