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Leonardo Sakamoto

Nos EUA, protestos contra o racismo. No Brasil, um ato com tochas acesas

O ato do "Os 300 do Brasil" contava com a participação de cerca de 30 pessoas                              -  Wallace Martins/Futura Press/Estadão Conteúdo
O ato do "Os 300 do Brasil" contava com a participação de cerca de 30 pessoas Imagem: Wallace Martins/Futura Press/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

31/05/2020 12h39

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Uma das táticas do grupo bolsonarista "300 do Brasil" é causar ações de impacto midiático. Após sua porta-voz, Sara Winter, ter sido alvo de uma operação da Polícia Federal, na última quarta (27), o grupo realizou um protesto na frente do Supremo Tribunal Federal, na noite deste sábado, carregando tochas acesas, usando máscaras e urrando como a falange espartana no filme "300", de Zack Snyder.

Gritavam ameaças contra o ministro Alexandre de Moraes, responsável pelo inquérito das fake news, que investiga a ativista e uma série de aliados de Jair Bolsonaro.

A imagem ecoa a estética de atos supremacistas brancos nos Estados Unidos mais do que a da história em quadrinhos que inspirou o filme. Com isso, cria um burburinho que potencializa a diminuta manifestação - as imagens mostram que "300" até pode ser uma marca, mas está muito longe de ser uma contagem numérica com a presença de 10% desse total.

Manifestações que usam esses elementos costumam trabalhar com a dubiedade, de forma a provocar revolta por parte de setores progressistas e, posteriormente, afirmarem que estão sendo perseguidos, injustiçados e mal compreendidos.

O protesto era contra a cúpula do Poder Judiciário, não pregava a discriminação racial. Por isso, tem mais chance de causar desconforto institucional do que a morte de João Pedro, de 14 anos, com um tiro nas costas durante uma ação policial que invadiu a casa onde brincava com os primos em São Gonçalo (RJ). João Pedro gerou comoção, mas já virou estatística, pois a fila de jovens negros mortos andou depois dele.

De qualquer forma, o timing para usar tochas acesas em uma manifestação noturna não poderia ser pior. Os Estados Unidos enfrentam protestos raciais em grandes cidades, como Nova York, Los Angeles, Chicago, Dallas, Atlanta, após George Floyd, um homem negro de 46 anos, ter sido torturado e morto por um policial branco em Minneapolis à luz do dia. A cena foi gravada e distribuídas nas redes sociais. Como o racismo estrutural e institucional não é monopólio norte-americano, manifestações em solidariedade irromperam em outras cidades do mundo.

Um colega jornalista de Nova York me enviou o vídeo dos "300" e, ironizando, disse que, para quem vê de fora, o Brasil resolveu copiar Charlottesville como sua homenagem ao Black Lives Matter.

Explico. Centenas de racistas e neonazistas marcharam, na noite de 11 de agosto de 2017, em Charlottesville, nos Estados Unidos, carregando tochas e entoando palavras de ordem contra negros, migrantes, homossexuais, judeus. Bradaram que "vidas brancas importam", uma referência ao movimento "Black Lives Matter", contra a morte de negros pelas mãos do poder público. Sem pudor algum. Nas semanas seguintes, houve forte reação de repúdio nos EUA. O presidente Donald Trump, por outro lado, foi acusado de minimizar a ação dos supremacistas.

Se há uma figura de linguagem que cabe neste momento não é a ironia, mas o cinismo. No Brasil, há um genocídio de jovens pobres e negros nas periferias das grandes cidades. Enquanto isso, a grande ação de destaque do governo federal nesse campo é a preocupação em passar pano criando selo antirracista concedido pela Fundação Palmares.

Além do nosso racismo genocida, nos últimos anos, passaram a ocorrer manifestações pedindo intervenção militar na democracia brasileira - uma forma pouco rebuscada de defender golpe militar. Seus defensores exigem, paradoxalmente, a liberdade para proferir um discurso intolerante, defendendo a volta a um tempo em que a tolerância e a liberdade eram proibidas.

Considerando que nossa sociedade é mais violenta que a norte-americana sob qualquer ponto de vista; que aqui vidas negras importam muito pouco; que homossexuais e transexuais são violentados e mortos de forma cruel ou tratados como cidadãos de segunda classe; que migrantes são atacados com frequência, inclusive com o uso de armas; me pergunto qual seria o estopim para que parte da população brasileira fosse, em massa, às ruas contra tudo isso.

Aliás, existe tal estopim para desencadear uma reação ou o espaço que o conservadorismo violento tem para crescer no Brasil é infinitamente maior que nos EUA por conta da nossa formação histórica e cultural e da violência orgulhosa de parte das elites econômica e política?

Mas, vale lembrar, que nossa democracia é disfuncional não porque um grupelho de extrema-direita protesta com tochas ameaçando o Supremo Tribunal Federal, mas porque do total dos mortos em decorrência de intervenção policial, entre 2017 e 2018, 75,4% eram pessoas negras - apesar desse grupo representar 55% da população.

Ou por no Rio de Janeiro, de João Pedro, negros contarem com 23,5% mais chances de serem mortos do que o restante da população - número que salta para 147% se for considerada apenas a idade de 21 anos, quando há o pico da probabilidade.

O silêncio diante de um genocídio é que é disfuncional, não a revolta contra ele. Mas muitos preferem criticar a resposta dos movimentos negros ou equiparar grupos fascistas com os antifascistas - que, hoje, protestaram em São Paulo e no Rio. Talvez estejamos apenas esperando um país de terra arrasada para que os poucos que sobrarem superem as diferenças e marchem juntos sobre seus escombros.