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Leonardo Sakamoto

Inútil na covid, cloroquina se torna arma bolsonarista contra a ciência

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido), em sua live semanal - Reprodução/YouTube
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido), em sua live semanal Imagem: Reprodução/YouTube

Colunista do UOL

23/07/2020 21h34

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Jair Bolsonaro parou para conversar com garis que faziam a limpeza da área externa do Palácio do Alvorada, sem máscara e sem respeitar o distanciamento social, nesta quinta (23). Ou ele vem mentindo e não está com covid-19 ou realmente é incapaz de sentir empatia, chegando ao ponto de colocar em risco a vida das pessoas que para ele trabalham deliberadamente.

Talvez se fossem grandes empresários, ele ainda se prestaria a usar máscara antes de começar uma conversa neste momento em que é vetor de transmissão da doença. Mas, eram garis - um dos grupos de trabalhadores mais essenciais e, ao mesmo tempo, menos respeitados.

Seguidores do presidente nas redes sociais disseram que, pelo contrário, ele respeita tanto esses profissionais que parou para falar com eles. Mentira. Bolsonaro ama o som da própria voz ecoando em plateias, mesmo que ela carregue apenas vírus.

O mandatário não vê problema pois, em último caso, uma caixa de cloroquina resolve - como ele mesmo disse, "não tem comprovação científica que não seja eficaz". E, assim, vai normalizando o contato entre doentes e sãos e, ancorado em um medicamento que não funciona para covid, segue empurrando a população de volta ao trabalho.

Se considerasse que a vida dos brasileiros é importante, levaria em consideração a ampla pesquisa liderada pelos hospitais Albert Einstein, Sírio-Libanês, HCor, Oswaldo Cruz e Beneficência Portuguesa, Moinhos de Vento, entre outras instituições, que mostrou que a hidroxicloroquina não melhora a vida de pacientes com sintomas leves e moderados de covid. Colocaria um ponto final em sua carreira como garoto-propaganda de remédio.

Mas ele não está preocupado em salvar vidas, nunca esteve. Quer uma retomada rápida da economia para garantir sua reeleição. Para tanto, sua tática negacionista se adapta. Primeiro, era fantasia. Depois, gripezinha. Daí, criou a fake dos caixões vazios. De lá, inventou uma tal conspiração contra a cloroquina. Aí começou o "todo mundo morre um dia". Para depois fazer cálculos de óbito/habitante e tentar convencer que não estamos tão mal.

Dessa forma, esconde o fato que nos enfiou na lama tanto ao se omitir em liderar o país quando ao menosprezar o vírus para convencer a população a continuar trabalhando.

Nesta quinta (23), ouvimos o ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, copiar o presidente ao tirar o corpo fora sobre a aplicação de políticas de isolamento social. Como o chefe, repetiu a mentira de que isso é responsabilidade apenas de prefeitos e governadores. Não admira, portanto, que informado pela área técnica da necessidade de distanciamento social sob risco de extensão da pandemia por dois anos, passou por cima da informação e, como bom bolsonarista, fomentou o retorno à normalidade.

A partir do momento em que levantou a caixa de cloroquina para uma multidão de fãs como se erguesse uma Copa do Mundo, Bolsonaro mostrou que não se preocupa mais se as mentiras que conta parecem desconjuntadas. O que importa é a performance.

"No Brasil ninguém morreu, que eu tenha conhecimento, por falta de atendimento médico. Todos os recursos o governo repassou para estados e municípios", disse nesta quinta.

Em cidades como Manaus, onde o sistema de saúde colapsou, brasileiros morreram esperando um leito de UTI. Um monte de ninguém, portanto.

Reportagem na Folha de S.Paulo, desta quarta, mostrou que auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) apurou que seu governo desembolsou menos de 30% dos recursos emergenciais que havia prometido para combater o coronavírus até o final de junho. Ou seja, o "todos os recursos" de Bolsonaro tem um déficit de realidade de mais de 70%.

Os seguidores fanáticos do presidente absorvem a cloroquina como uma cura que, na visão deles, vem sendo escondida por uma conspiração da imprensa, de comunistas e de chineses a fim de manter a população com medo e deprimir a economia através de bloqueios desnecessários.

Mas ela é também a representação palpável da negação ao conhecimento e a todos os que usam a ciência para dizer a eles o que é melhor para suas vidas. Com isso, o apoio à cloroquina torna-se um repúdio a cientistas e intelectuais que impõem regras de isolamento, mas são incapazes de explicar suas dúvidas, resolver suas inseguranças e acabar com suas angústias.

É compreensível que a pandemia gere um sentimento de impotência na população diante da falta de informação sobre os efeitos e o tratamento da covid-19, uma doença nova e que ainda está em estudo. Contudo, isso abre espaço para que líderes demagógicos preencham as lacunas, mesmo com mentiras, e apontem soluções que não resolvem. Parte da população abraça essas soluções em busca de alguma coerência para suas vidas. E se colocam ao lado dos líderes na luta contra o razão e em nome da convicção.

Foram 1.317 mortes registradas nas últimas 24 horas, totalizando mais de 84 mil óbitos - e nada indica que o ritmo vá arrefecer tão cedo.

Enquanto isso, temos um presidente que não se importa se garis, médicos e enfermeiros, entregadores de comida, operários de frigoríficos, motoristas de ônibus, agricultores vivem ou morrem. O mais estranho é que, ao que tudo indica, por mais que sua administração seja nociva, tal qual a cloroquina, ao final, haverá muita gente batendo palmas para ele, dizendo que teve coragem de enfrentar interesses poderosos para salvar o Brasil.

Como disse, o que importa é a performance. Ainda que vazia. Ainda que letal.