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Leonardo Sakamoto

Covid: Sem lei que proíba despejo, moradores vivem roleta-russa na Justiça

Morador trabalha na construção de barraco em terreno ocupado no Jardim Julieta - Lalo de Almeida/ Folhapress
Morador trabalha na construção de barraco em terreno ocupado no Jardim Julieta
Imagem: Lalo de Almeida/ Folhapress

Colunista do UOL

08/08/2020 10h11

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Resumo da notícia

  • Não há lei que impeça remoções durante a pandemia de coronavírus, nem orientação formal do Tribunal de Justiça de São Paulo nesse sentido.
  • MP, Defensoria e deputados pediram para que o Tribunal orientasse pelo não despejo. TJ-SP afirma que decisão cabe a cada magistrado.
  • A Assembleia Legislativa não aprovou medida para suspender remoções na pandemia. E Bolsonaro vetou lei aprovada no Congresso que suspenderia despejos.
  • A capital paulista conta com um déficit quantitativo de mais de 500 mil residência e, de acordo com o MP, há pessoas aguardando há mais de 30 anos.
  • MTST fez protesto pelo fim dos despejos e por recursos para a construção de moradias; governo estadual fez proposta que não foi aceita pelo movimento.

Enquanto o Brasil se preocupa com a marca de 100 mil mortes oficiais por covid-19, a assistente administrativa Valdirene Ferreira olha no calendário, preocupada com a próxima segunda (10), quando, a princípio, vence o prazo dado pela Justiça para que ela e mais de 800 famílias deixem um terreno no Jardim Julieta, Zona Norte da capital paulista.

A Prefeitura da capital, dona da área, pretende construir moradias no local. E como não há lei estadual ou federal que impeça remoções durante a pandemia, nem orientação formal do Tribunal de Justiça de São Paulo nesse sentido, a Polícia Militar continua cumprindo reintegrações de posse quando solicitadas por particulares ou pelo poder público.

"Quem tinha que nos proteger é que está nos jogando na rua", afirma Valdirene.

Boa parte das famílias que estão na ocupação já haviam sido despejadas antes de algum lugar por conta da crise econômica decorrente do coronavírus. Tanto que algumas só conseguiram erguer seus novos barracos com recursos do auxílio emergencial.

A contradição entre o "fique em casa" recomendado por (quase todas) autoridades durante a pandemia e os despejos e as reintegrações de posse é um caso exemplar da falta de ação dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, segundo ouvidos pela reportagem.

De acordo com levantamento do LabCidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP) a quantidade de remoções na Região Metropolitana de São Paulo dobrou entre abril e junho se comparado com o trimestre anterior, impactando 1.300 famílias. A maior parte dessas remoções foram realizadas, segundo o LabCidade, sob ordens do Tribunal de Justiça.

Poder Judiciário: Despejos e reintegrações seguem sendo autorizados

"Logo que começou a pandemia, a Promotoria de Habitação encaminhou requerimento à presidência do Tribunal de Justiça para que orientasse juízes a não expedir reintegrações de posse. Mas o TJ-SP não quis se posicionar", afirma o promotor Marcus Vinícius Monteiro dos Santos.

Parte dos magistrados da primeira instância está sensível ao risco de enviar famílias para a rua considerando que o isolamento social é a única forma de combate efetivo à doença. "Mas a parcela que não está sensível e parte da segunda instância, quando expedem ordens, causam um estrago muito grande", explica.

A Defensoria Pública também fez o mesmo pedido ao Tribunal de Justiça. "O TJ-SP entendeu que era uma decisão de cada juiz e encaminhou nosso pedido como nota técnica aos magistrados", afirma Allan Ramalho Ferreira, defensor público do núcleo especializado de Habitação e Urbanismo.

"Mas o Tribunal de Justiça do Paraná suspendeu as reintegrações", ressalta.

O defensor se refere ao decreto judiciário 172/2020, assinado pelo presidente do TJ-PR, desembargador Adalberto Jorge Xisto Pereira, que informa que ficam suspensos "o cumprimento de ordens de reintegração de posse por invasões coletivas ocorridas anteriormente à expedição deste decreto".

A decisão no Paraná se baseou, por sua vez, na Resolução 313/2020, do Conselho Nacional de Justiça, que suspendeu os prazos processuais durante na pandemia. O documento não impõe obrigação aos magistrados, segundo afirmou o ministro Dias Toffoli, presidente do órgão e do Supremo Tribunal federal, mas é um amparo aos que tomarem essa decisão

"Entendemos que o Tribunal de Justiça orientar o restante da magistratura paulista seria a forma mais rápida de resolver a questão. Partidos de oposição na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) fizeram reunião com a Presidência da corte, mas também não tiveram uma resposta positiva", afirma Monica Seixas, da Bancada Ativista, líder do PSOL.

Como não há orientação por parte do Tribunal, cada juiz decide como acha melhor. Ou seja, depende da "sorte" de cair nas mãos de um magistrado mais ou menos sensível à situação.

"O Judiciário é uma roleta russa, mas o tema não deveria suscitar um Fla-Flu porque pessoas podem se infectar e morrer. Deveria haver consenso em torno da preservação da vida", afirma o promotor.

Através de sua assessoria de comunicação, o TJ-SP afirmou à coluna que não interfere em decisões jurisdicionais proferidas pelos juízes paulistas. "Compete aos magistrados responsáveis pelos processos de despejo ou reintegração de posse, a análise individualizada da questão judicial. Eles decidem com base em critérios legais e com independência funcional, cabendo recurso nos casos de discordância".

Poder Legislativo: Não há lei que impeça remoções na pandemia

A deputada Monica Seixas relata que não foi possível incluir a suspensão dos despejos no projeto emergencial de enfrentamento à covid, aprovado na Assembleia paulista. O tema não foi aceito pela base do governo na casa.

O deputado estadual Paulo Fiorilo (PT) foi na mesma linha, listando emendas e projetos que poderiam ter evitado as remoções durante a pandemia. Todos foram rejeitados ou ainda não foram analisados.

O coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, defende que o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), por ter maioria e influência política, conseguiria aprovar um projeto na Assembleia Legislativa ou mesmo articular uma orientação com o Tribunal de Justiça.

"Quando é de interesse do governo estadual, ele articula à luz do dia. Bastava aprovar uma lei estadual para evitar todo esse sofrimento", afirma

MTST realiza marcha até a sede do governo paulista para pedir o fim dos despejo durante a pandemia - MTST - MTST
MTST realiza marcha até a sede do governo paulista para pedir o fim dos despejo durante a pandemia
Imagem: MTST

Em âmbito federal, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) vetou o artigo 9º do projeto de lei 1179/2020, que proibia despejos de inquilinos inadimplentes até 30 de outubro deste ano por causa da pandemia.

O presidente fez uma postagem no Facebook para mostrar aos seus seguidores os vetos ao projeto de lei: "vetei artigos que davam poderes aos síndicos de restringir a utilização de áreas comuns e proibir a realização de reuniões e festividades inclusive nas áreas de propriedade exclusiva dos condôminos".

Mas, curiosamente, se furtou de comentar que bloqueou o artigo que prejudica quem pode ser vítima de despejos por não conseguir pagar o aluguel na pandemia.

O líder do PSB na Câmara dos Deputados, Alessandro Molon (PSB-RJ), que atuou pela aprovação da lei, afirmou à coluna que Bolsonaro ignora a angústia de milhares de pessoas que foram atingidas pela crise.

"Se não bastasse a falta de sensibilidade com os quase 100 mil mortos pela covid-19, despreza também a dor das famílias à beira do despejo", afirma.

Poder Executivo: Municípios demandam áreas de volta na pandemia

Flávio Amary, secretário estadual de Habitação, disse à coluna que o governo João Doria garante que moradores não serão retirados dos imóveis sob sua responsabilidade, o que incluem residências financiadas pela CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano).

E explicou que o governo não deve se articular junto ao Tribunal de Justiça e à Assembleia Legislativa para buscar a suspensão de despejos e reintegrações em qualquer imóvel. "A ação nossa é restrita à nossa pasta da Secretaria de Habitação e à CDHU. Não vai ter interferência nossa sobre decisões da Justiça e da iniciativa privada", explica.

O Ministério Público de São Paulo recomendou à Prefeitura da capital paulista a interrupção de despejos e reintegrações enquanto durar o estado de calamidade pública. O documento, divulgado no dia 23 de julho.

"Não tem sentido o governo dizer 'fica em casa' e por a gente na rua. Que coisa é essa que vale só para os ricos, mas não pra gente?", afirmou à Valdirene Ferreira.

Uma fonte afirmou à coluna que há uma proposta que será discutida pelos moradores da ocupação do Jardim Julieta neste domingo (9). O prefeito Bruno Covas (PSDB) aceitaria postergar a reintegração de posse por seis meses para evitar danos aos moradores por conta da pandemia. Enquanto isso, a administração municipal tentaria construir uma outra alternativa para as famílias que estão, hoje, no terreno.

A Prefeitura afirmou que há um projeto habitacional planejado para o local, a ser erguido com uma parceira público-privada, com compromisso firmado com outras 800 famílias em situação de vulnerabilidade.

Outro ponto polêmico é a reintegração de posse das quadras 37 e 38 da Cracolândia do bairro da Luz, no Centro da capital. Em coletiva à imprensa no último dia 30, o prefeito confirmou que vai dar sequência a despejos para dar sequência ao programa de qualificação na região. Isso deve remover, segundo organizações sociais que atuam nas áreas de urbanismo e direitos humanos, 433 famílias. Elas publicaram uma carta de repúdio às declarações de Covas, defendendo que a retirada não aconteça neste momento.

"O que está acontecendo na Cracolândia vai na contramão do discurso do poder público. Vemos na TV o prefeito, diariamente, recomendando o distanciamento social e, ao mesmo tempo, os procuradores do município avançam nas reintegrações de posse", reclama o promotor Monteiro dos Santos.

Questionado se a pandemia é o melhor momento para remover uma grande quantidade de pessoas de lá, o secretário municipal de Desenvolvimento Urbano, Fernando Chucre, afirmou à coluna que não faz sentido que as pessoas cadastradas esperem para começar o processo de construção de suas moradias na região. "E se mudar a administração e assumir uma pessoa contrária ao atendimento habitacional dessas famílias? Volta-se quatro anos atrás?"

Sobre as críticas de que o valor de aluguel social de R$ 400 pagos aos cidadãos que vão deixar a Cracolândia enquanto durarem as obras seria insuficiente, ele afirma que, somando com o que já desembolsavam, podem obter um imóvel de melhor qualidade. E a respeito da quantidade de beneficiados ser bem menor do que os que lá ocupam hoje a área (as entidades falam em 433 famílias, das quais apenas 58 corresponderiam às 190 originalmente cadastradas), Chucre defende que após o cadastramento ter sido finalizado, não é possível incluir novos nomes que apareçam sob risco de furar a fila.

A capital paulista conta com um déficit quantitativo de mais de 500 mil unidades habitacionais e, de acordo com o Ministério Público, há pessoas aguardando há mais de 30 anos por uma residência. A falta de moradias é um problema antigo, mas agravado pela crise a partir de 2015 e piorado pela depressão econômica trazida pelo coronavírus.

O vírus, portanto, apenas escancarou a insuficiência histórica das políticas habitacionais nas três esferas de governo.

Déficit habitacional de 500 mil unidades só na capital

O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) reuniu cerca de 5 mil pessoas em uma marcha, na última quinta (30), para pedir o fim dos despejos e mais recursos para a construção de novas unidades. O secretário Amary e o presidente da CDHU, Reinaldo Iapequino, se reuniram com representantes do movimento durante o protesto e, nesta quarta (5), sem chegarem a um acordo.

A marcha terminou com a polícia lançando bombas de gás lacrimogênio para evitar que a multidão chegasse ao Palácio dos Bandeirantes.

Polícia militar lança bombas de gás para impedir que marcha do MTST chegasse ao Palácio dos Bandeirantes - MTST - MTST
Polícia militar lança bombas de gás para impedir que marcha do MTST chegasse ao Palácio dos Bandeirantes
Imagem: MTST

De acordo com o secretário, o governo se propõe a fazer um aporte de até R$ 40 mil reais por unidade habitacional dentro do programa "Nossa Casa Entidade", no qual oferecem subsídio complementar ao do governo federal. Segundo ele, isso não foi aceito pelo MTST. "Espero que reconsiderem. Ainda mais no momento difícil em que a gente vive hoje, de pandemia, com orçamento concentrado na área da saúde", diz.

"O secretário ofereceu aquilo que não tem. Essa proposta não para em pé. Por exemplo, isso depende de um aporte do governo federal, que não está liberando, por contingenciamento. O que o governo está fazendo é lavar as mãos", diz Guilherme Boulos. "O governo fechou compromisso de liberar recursos para conjuntos habitacionais que estão esperando há anos, mas contingenciou recursos para moradia durante a pandemia."

Tanto Amary quanto Boulos concordam, porém, que a construção de moradias populares deve ser um dos vetores de retomada da economia. Enquanto o primeiro afirma que a contratação de novas unidades é impossível porque os recursos foram realocados para a saúde, o segundo diz que a garantia de saúde e de empregos passa por moradia.

A questão, no fundo, não é a reintegração de posse em si, mas a falta de políticas para garantir que pessoas não fiquem ao relento. Para o promotor da Habitação, se os despejados fossem imediatamente destinados a locais adequados onde pudessem morar, ninguém estaria preocupado.

"Pessoas despejadas não desparecem. Elas vão ter que se abrigar em outro lugar, dando origem a outras ocupações. Para que serve um despejo, uma reintegração de posse durante um momento de pandemia? Jogar o problema para outra pessoa, outro juiz, outro prefeito, resolver."

Enquanto isso, Valdirene e colegas de ocupação vão dialogando com a administração municipal, para que a segunda-feira não chegue nos próximos meses.

"Para onde a gente vai se nos despejarem de novo? Não sei. Você sabe o que é não ter mais nenhuma alternativa na vida?", pergunta.