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Leonardo Sakamoto

Do 'E daí?' ao 'Não dou bola', o desprezo de Bolsonaro pela vida é coerente

                                 "Entre mim e a vacina tem uma tal de Anvisa, que eu respeito e não estão querendo respeitar", argumentou Bolsonaro                              -                                 FáBIO RODRIGUES POZZEBOM/AGêNCIA BRASIL
"Entre mim e a vacina tem uma tal de Anvisa, que eu respeito e não estão querendo respeitar", argumentou Bolsonaro Imagem: FáBIO RODRIGUES POZZEBOM/AGêNCIA BRASIL

Colunista do UOL

26/12/2020 14h58

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Quando historiadores estudarem este momento turbulento da História brasileira dirão que, apesar dos muitos defeitos de Jair Bolsonaro, ele foi uma pessoa coerente durante a pandemia. Sim, o desprezo pela vida humana que demonstra frente à covid-19 é inabalável.

"Ninguém me pressiona pra nada, eu não dou bola pra isso", disse o presidente, na manhã deste sábado (26), após ser questionado por jornalistas se havia pressão pelo fato de outros países, inclusive nossos vizinhos, já terem começado a vacinar sua população. O atraso tupiniquim se deve, em muito, à falta de planejamento e de articulação por parte do governo federal. Atraso que vai custar a vida de muita gente.

Faça chuva, faça sol, morram 1 mil ou 190 mil, na Páscoa ou no Natal, o desprezo não falha jamais.

O "não dou bola para isso" é irmão do "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre", proferido pelo mandatário há oito meses. Questionado, no dia 28 de abril, sobre o fato de o Brasil ter superado a China em número de mortos por covid-19, ele deu essa declaração antológica.

As duas declarações são primas do "foda-se" do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, parido em fevereiro. Ele havia conclamado o presidente a não ficar "acuado" pelo Congresso Nacional - que pressionava para ficar com uma parte maior do Orçamento - e "convocar o povo às ruas". A indignação foi captada pelo áudio de uma live.

O Congresso e o Supremo Tribunal Federal conseguem, aqui e ali, aplicar freios e contrapesos aos "foda-se" do governo federal, mas o Poder Executivo consegue reduzir o impacto disso comprando ou ameaçando membros de outros poderes. Ainda mais quando conclama turbas de seguidores contra as instituições.

Ao longo deste ano, isso se traduziu em ameaças de atentados contra presidentes do Legislativo e do Judiciário. E a ataques a governadores e prefeitos que resolveram implementar medidas de isolamento social a fim de reduzir o ritmo de contágio pelo coronavírus, uma vez que a Presidência se omitiu.

A "Era do Foda-se" tem suas consequências, claro. Vendo autoridades darem de ombros para a razão, a população vai copiando. E passam a descumprir leis, regras e normas porque percebem que não valem muita coisa, mesmo. No caso mais recente, seguem as orientações do presidente, ignorando quarentenas, saindo de casa mesmo quando não há necessidade, contaminando e se deixando contaminar. No caso mais crônico, acreditam quando governantes dizem que não existe racismo e que mortes como a de João Alberto, no estacionamento do Carrefour, são apenas "acidentes".

E, iniciado, o processo de derretimento das instituições e do respeito da população a elas não pode ser freado do dia para a noite, como já analisei em outro texto aqui. Retomo, portanto, parte da reflexão.

A solução demanda nova pactuação política e social, aliada a muito suor em articulações para a construção de consensos - exatamente aquilo a que um governo autoritário tem ojeriza. Porque um governo autoritário precisa do enfrentamento que cria inimigos reais e imaginários para sobreviver e fazer os cidadão esquecerem seus erros e crimes.

Da mesma forma que o governo federal não apresentou um plano de vacinação que possa ser chamado como tal, também não trouxe a público um plano nacional para geração de empregos formais. Até as justificativas frente aos problemas são semelhantes. Diante da falta de um plano do seu governo para gerar emprego, em maio do ano passado, Bolsonaro falou: "Tenho pena, tenho. Faço o que for possível, mas não posso fazer milagre, não posso obrigar ninguém a empregar ninguém".

Essas declarações servem como gabarito para a interpretação da narrativa presidencial frente a esses dois grandes desafios. E o discurso que vende a terceirização da responsabilidade tem dado certo, como mostra pesquisa Datafolha sobre sua popularidade, que se mantém estável.

O presidente deveria ter gastado todas as energias para buscar formas de vacinar a população em um curto espaço de tempo. E saídas para gerar postos de trabalho, promovendo diálogos entre o setor produtivo, trabalhadores e a sociedade civil. Mas a prioridade presidencial é proteger seus filhos de processos judiciais, como a denúncia apresentada contra o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) por desvio de recursos públicos, lavagem de dinheiro e organização criminosa.

E, como também já disse aqui, o Brasil vai se tornando um palco de batalhas no qual o que importa é quem grita, xinga, ataca, espanca, mata mais. Cada um por si e Deus acima de todos.

O respeito à vida? "Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre. Ninguém me pressiona pra nada, eu não dou bola pra isso".