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Leonardo Sakamoto

Trabalhador pobre paga a conta de Megafestas da Covid neste final de ano

Enterro de vítima da covid-19 no cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus (AM) - Edmar Barros/Futura Press/Estadão Conteúdo
Enterro de vítima da covid-19 no cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus (AM) Imagem: Edmar Barros/Futura Press/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

29/12/2020 17h45

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Ondas de paulistas foram se refugiar no litoral baiano neste fim de ano, lotando festas clandestinas e gerando até filas de jatinhos nos aeroportos de Trancoso e Porto Seguro. Outros desceram em peso ao litoral de São Paulo para se aglomerar em baladas que deveriam estar fechadas. A questão não é a viagem em si, mas o comportamento irresponsável no local de destino, como se o vírus e todas as preocupações tivessem ficado para trás.

A covid-19 é uma doença que subverte a promessa cristã de que as pessoas, algum dia, pagarão pelos seus pecados. No contexto da pandemia, a irresponsabilidade no comportamento de alguns entra na conta de outros. O resultado ajuda a bombar o número de óbitos registrados diariamente - número que atingiu 1.111 nesta terça (29).

Não raro, a "punição" da parcela dos que têm acesso a bons hospitais, alimentação saudável e saneamento básico é terceirizada a faxineiras, cozinheiras, babás, cuidadores, seguranças, motoristas - que não contam com a mesma estrutura de proteção. Em outras palavras, comportamentos irresponsáveis não apenas colocam em risco idosos e pessoas imunodeprimidas, mas quem permanece trabalhando para garantir o nosso bem-estar.

A primeira vítima fatal de covid-19 no Rio de Janeiro foi uma sexagenária empregada doméstica pobre, moradora de Miguel Pereira, que percorria semanalmente 120 quilômetros até a casa em que trabalhava no rico Leblon.

Sua empregadora havia visitado a Itália e aguardava o resultado do exame para coronavírus - que acabou dando positivo. "A patroa não avisou para ela que achava que estava doente", disse o irmão da vítima à Agência Pública. Ela trabalhou até 16 de março e faleceu no dia seguinte.

Acompanhamos pela imprensa as notícias de que uma festa de casamento em Itacaré, no Sul da Bahia, também em março, reunindo membros da elite sudestina, pode ter funcionado como um "covidário", tornando-se foco da doença não apenas entre os nobres convidados, mas também para trabalhadores locais.

No mesmo mês, um empresário viajou para a Bahia em seu jatinho e transmitiu coronavírus a um empregado de sua casa em Trancoso. De acordo com o governador Rui Costa (PT) na época, ele desrespeitou o isolamento e, abordado na praia por agentes de saúde, teria dito: "O que é que um banho de mar não resolve? Mata qualquer vírus".

Ganha uma caixa de hidroxicloroquina superfaturada quem apontar qual político usa e abusa desse tipo de justificativa.

Ao que tudo indica, estamos fadados a viver na pandemia, como no antológico Feitiço do Tempo, com Bill Murray, num eterno Dia do Marmota, que se repete, e repete, e repete. Com a diferença que o protagonista do filme aprendeu com seus próprios erros - talvez porque não pudesse terceirizar as consequências deles para ninguém.

Ouvi o relato de uma pessoa que voou para o Sul da Bahia antes do Natal, foi a uma festa de conterrâneos paulistanos e na volta testou positivo para covid, bem como outros amigos que foram ao mesmo local. No aeroporto, segundo ela, centenas se aglomeravam na volta. Transmitindo. Assintomáticos.

Por aqui, por mais que alguns hospitais estejam perto da lotação, há sempre um para nos dar conforto. E os trabalhadores do aeroporto, os da limpeza das residências, os da segurança pública, os garis no Sul da Bahia e seu insuficiente sistema de saúde que já está batendo nas tampas?

E não só lá. Um médico que atende no Samu no litoral paulista desabafou à coluna: "Aqui a praia está lotada, como se não estivesse acontecendo absolutamente nada. Bares e restaurantes cheios, casas noturnas tentando vender ingressos para final de ano, feijoadas com música". Os turistas trazem pranchas, raquetes e frescobol e cangas, mas não um sistema de saúde capaz de dar conta dos trabalhadores locais contaminados por eles no mês que vem. "Ao ficarem doentes, sobem a serra. E o pessoal daqui? Como fica?"

O objetivo aqui não é incutir culpa, tampouco fomentar paranoia - que só piora a situação, muito menos afirmar que só ricos espalham coronavírus, uma vez que temos visto festas reunindo centenas de jovens "invencíveis" nas periferias de grandes cidades.

Mas a solidariedade tão falada neste Natal não é aquela pregada no Novo Testamento, no qual se reconhece em estranhos a dignidade que acreditamos ter direito. Pelo contrário, é uma solidariedade de Instagram, que não se traduz em cuidados e preocupação nem mesmo aos "parças", como diria Neymar. Que dirá, portanto, a trabalhadores que convivem com eles.

Não raro é o cada um por si e o messias por todos. Ou nem isso, pois como diria o filósofo: "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre".

Como bem resumiu um magistrado da Justiça do Trabalho da Bahia à coluna, "é macabro ser trabalhador pobre no Brasil".