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Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Auxílio Brasil não é Bolsa Família turbinado, mas ação para compra de votos

Colunista do UOL

20/10/2021 12h09Atualizada em 20/10/2021 20h07

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O Auxílio Brasil, da forma como foi apresentado ao Congresso Nacional, não é um Bolsa Família turbinado, mas seu primo macabro, proposto de forma atabalhoada e incompleta visando a fins eleitoreiros. Mesmo o aumento perseguido por Jair Bolsonaro de R$ 190 para R$ 400, bancado parcialmente com dinheiro que pode vir de calotes em dívidas com aposentados, deve durar o tempo de uma reeleição, ou seja, até o final de 2022.

No afã de passar o trator sobre uma das principais bandeiras da administração de Lula, seu concorrente direto, o presidente está mudando a natureza do programa, o que vai influenciar em sua capacidade de ajudar pessoas a permanecerem fora da miséria. Seria o equivalente ao PT implodir os resultados do Plano Real só para não ver os tucanos na presidência novamente.

Primeiro, é um absurdo que a criação do Auxílio Brasil no lugar do Bolsa Família tenha chegado ao Congresso Nacional na forma de Medida Provisória, reservada a ações urgentes, castrando o debate com a sociedade. Bolsonaro teve uma pandemia inteira para bolar um projeto e, agora, propõe algo a toque de caixa, o que só reforça seu caráter eleitoreiro. O governo justifica que a fome da pandemia deixou tudo mais urgente. Se o presidente se preocupasse realmente com isso, não teria suspendido o auxílio emergencial de janeiro a abril. Ou sugerido, em 1º de junho, a quem passava necessidade por receber um benefício que voltou com piso de R$ 150, a procurar empréstimo no banco.

Segundo, a pressa de Bolsonaro em melhorar seus índices de popularidade fez com que a MP 1061/2021 tivesse mais buracos que uma esponja. Não há referências ao valor das linhas de extrema pobreza e pobreza, o que significa que você não identifica nem seu público-alvo. Não diz de onde virão os recursos - a equipe econômica estuda formas de pedaladas. Para 2022, ano de eleição, ele quer entregar um Auxílio Emergencial de R$ 300, mais um complemento de R$ 100 de forma temporária. Considerando que parlamentares não abrirão mão de emendas, isso só será possível com cambalachos para contornar a regra do teto de gastos públicos.

Particularmente, sou crítico ao teto. Mas ele não pode ser ignorado por conveniência: ou vale para todo mundo ou para ninguém. Permitir que ele pedale nas contas públicas para poder ganhar a eleição, é ilegal e imoral. Bolsonaro quer dar um cambau no pagamento de dívidas do governo para poder financiar o Auxílio Brasil. Como metade dos precatórios vêm de erros no cálculo de aposentadorias e salários, muito cidadão vai ficar a ver navios. Ou seja, ele vai tirar de pobres para dar a paupérrimos, o que prometeu não fazer.

Proposta de aplicativo para inclusão de famílias vai repetir problemas do auxílio emergencial

Terceiro, as entrevistas com famílias candidatas ao Bolsa são feitas por entrevistadores do Cadastro Único (a gigantesca base de dados que é usada por dezenas de programas sociais para famílias em vulnerabilidade) no município, ou seja, na ponta. O governo quer, contudo, privilegiar a entrada dos mais necessitados no CadÚnico através de um aplicativo, o que dificultaria o acesso a milhões e geraria fraudes - problema que também aconteceu com a entrada no auxílio emergencial.

Os mais conectados conseguiram acesso, mas a população em situação de rua, por exemplo, passou dificuldades e muitos ficaram a ver navios.

Substituindo entrevistadores capacitados por um formulário em um aplicativo, você reduz a capacidade de atender de verdade às famílias, abandonando a capilaridade que garante o sucesso do programa e desumanizando-o.

Quarto, o Auxílio Brasil funcionará como um conjunto de programas, cada um contribuindo com uma parte dos recursos. Um deles, prevê o pagamento de creches particulares pelo governo em nome da família beneficiada quando não houver vagas no sistema público para suas crianças. O sistema é semelhante ao de "voucher", tendo que a família comprovar ampliação de renda ou vínculo formal de emprego para se manter no programa. Mais racional seria o governo federal repassar os recursos às prefeituras, que são responsáveis por garantir as creches, ao invés de gerar um sistema confuso, que pode acabar custando mais caro ao país só para ganhar pontos com o eleitor.

Outra ação, a Inclusão Produtiva Rural, prevê que agricultores pobres doem alimentos a pessoas em situação de vulnerabilidade. Considerando que, não raro, a produção não dá nem para o sustento, fica como? O governo promete que o programa vai garantir inclusão produtiva, mas nada no programa aponta isso. Tirar de quem já produz para a sobrevivência?

Prioridades seriam zerar a fila, reajustar o benefício, simplificar regras

Caso Bolsonaro quisesse colher frutos eleitorais sem desmontar as boas coisas do programa, ele poderia simplificar as regras, zerar a fila de espera (o Consórcio Nordeste estima em 2,2 milhões de famílias no aguardo pelo benefício) e aumentar o seu valor médio, desatualizado, hoje em R$ 190. Poderia até rebatizá-lo de "Talkey Brasil", não importa o nome, desde que continuasse sendo um programa eficaz por retirar milhões da miséria. Atualizá-lo é uma coisa, enfraquecê-lo é outra.

Bolsonaro nunca entendeu o Bolsa Família. Acha que é distribuição de dinheiro pura e simples. Não compreende que a transferência condicionada à frequência escolar e à vacinação dos filhos e um atendimento humanizado por meio da assistência social eleva a qualidade de vida, permitindo uma porta de saída do programa. Não vê que esmagadora maioria dos beneficiários do Bolsa trabalham sim e não querem ficar na miséria a vida toda, mas precisam de uma ajuda para sobreviver enquanto isso não é possível

Pelo contrário, Jair sempre xingou o programa. Por exemplo, quando deputado federal disse, em entrevista ao jornalista Carlos Juliano Barros, em 2015, que quem recebe o Bolsa Família não faz nada da vida, só produz filhos para o Estado custear.

"Uma política de planejamento familiar, acho que só eu falo aqui nessa casa [Câmara dos Deputados]. O cara tem três, quatro, cinco, dez filhos e é problema do Estado, cara. Ele já vai viver de Bolsa Família, não vai fazer nada. Não produz bem, nem serviço. Não produz nada. Não colabora com o PIB, não faz nada. Fez oito filhos, aqueles oito filhos vão ter que creche, escola, depois cota lá na frente. Para ser o que na sociedade? Para não ser nada", afirmou.

Hoje presidente, Bolsonaro percebeu que não podia simplesmente acabar com o auxílio emergencial, por mais que os valores de R$ 150, R$ 250 e R$ 375 pagos atualmente sejam apenas uma sombra dos R$ 600/R$ 1.200 do primeiro semestre do ano passado, se quiser ter chances de reeleição. Decidiu colocar algo no lugar do Bolsa. E, aproveitando, destruir o que ele tem de melhor, por raiva, ignorância, por ideologia.

Dessa forma, transforma o programa naquilo que ele sempre criticou: distribuição de dinheiro com fins eleitorais.

Mas por que passar por cima do que estava funcionando ao invés de aprimorar?

Parte da resposta foi dada pelo próprio Bolsonaro em um jantar com lideranças conservadoras, em Washington DC, nos Estados Unidos, em 17 de março de 2019: "o Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer". O povo, nesse processo, é apenas um detalhe.