Leonardo Sakamoto

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Opinião

Morte 'por engano' não existe no Rio, onde violência virou cartão-postal

Independentemente de qual seja o motivo que levou à execução de três médicos, um deles irmão da deputada federal Sâmia Bomfim, em um quiosque na Barra da Tijuca, o caso mostra uma cidade em que a violência letal se tornou parte da paisagem como o Pão de Açúcar ou o Cristo Redentor. E não se morre "por engano" onde há uma epidemia de mortes violentas.

A Polícia Civil do Rio encontrou os corpos de quatro suspeitos de participarem da execução dos médicos e investiga se eles teriam sido sentenciados e mortos pelo Comando Vermelho. O que não representaria "justiça", mas um crime cometido sobre outro crime, um atestado de falência das instituições no estado.

Em janeiro do ano passado, outro quiosque da Barra da Tijuca havia sido palco do espancamento e morte do refugiado congolês Moise Kabagambe por três homens, caso que também gerou comoção nacional e internacional. Ele fazia bicos nos quiosques do bairro e foi cobrar uma dívida trabalhista de R$ 200. Os três acusados pelo linchamento estão presos e a Justiça ouve as testemunhas.

A morte de Moise bem como as dos ortopedistas Marcos, Perseu e Diego apontam uma cidade que perdeu o pudor para matar. Na qual, o tráfico, as milícias e parte das polícias acreditam que nada acontecerá com eles se atropelarem a lei. Como na maioria das vezes, nada acontece mesmo (vide as chacinas em complexos de favelas que permanecem impunes), segue o jogo.

Inspirada por esse exemplo de liberou-geral, parte da população abraça o mesmo comportamento. A liberdade com a qual criminosos atuam em seus territórios, sejam eles fardados ou não, leva o poder público e suas regras ao descrédito. E diante disso, o vale-tudo desce ao patamar das relações interpessoais diárias. O mais forte, o mais armado e o que tem mais amigos na política faz a lei.

Justiça para o trabalhador negro que se refugiou em busca de paz e para os médicos que estavam na cidade para um congresso profissional vai muito além de encontrar e punir os mandantes. Passa por uma refundação da política do Rio, que apodrece a olhos vistos devido à promiscuidade com a criminalidade.

Não se morre por engano em uma cidade em que a violência letal é parte do cotidiano. Pelo contrário, a morte torna-se uma possibilidade constante - claro, infinitamente maior se você é negro e pobre.

Por exemplo, o músico Evaldo Rosa e o catador de recicláveis Luciano Macedo, que foram fuzilados pelo Exército "por engano", com dezenas de tiros, em abril de 2019, na zona norte do Rio. É mais fácil um camelo passar pelo tal buraco da agulha do que o mesmo ocorrer no Leblon.

Mas a violência transborda, vez ou outra, atingindo outros grupos. Desta vez, foram médicos na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, região dominada pelo crime. Da próxima, quem sabe?

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Até porque um Rio que permitiu a execução de uma de suas vereadoras mais conhecidas, uma mulher negra, bissexual, periférica, e ainda não foi capaz de apontar os mandantes e as razões do crime, é um Rio livre para matar.

Provavelmente, as mudanças mais efetivas após as execuções, desta quinta (5), virão do próprio crime organizado, com um salve-geral para que todos chequem duas vezes quem está sendo morto antes de atirar. Para evitar chamar a atenção.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL