Topo

Maria Carolina Trevisan

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A fragmentada 'frente ampla' precisa dialogar antes de gritar impeachment

Manifestantes protestam contra ministros do STF em ato convocado pelo MBL em 2019 - Bruno Santos/ Folhapress
Manifestantes protestam contra ministros do STF em ato convocado pelo MBL em 2019 Imagem: Bruno Santos/ Folhapress

Colunista do UOL

09/09/2021 14h39Atualizada em 09/09/2021 19h08

A defesa da democracia demanda organização, estratégia e diálogo. Requer muito mais do que um tardio e conveniente posicionamento a favor do impeachment do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Exige humildade das lideranças — sejam elas partidárias, de movimentos ou não — e daqueles que se consideram dentro do campo democrático. Requer que se baixe a guarda até diante de rixas históricas.

Em primeiro lugar, em uma frente que se propõe ampla não cabem bandeiras da direita ou da chamada "terceira via", nem o bordão "nem Bolsonaro, nem Lula", que está na pauta dos atos do próximo dia 12 e estampa camisetas a venda no site do MBL (Movimento Brasil Livre).

Não cabem porque todos os atores do campo democrático são importantes e necessários nessa ampla aliança, em especial, as lideranças históricas. É mais do que evidente que o legado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não pode ser comparado de forma objetiva e ponderada ao que faz Bolsonaro no que se refere ao respeito à democracia.

Em segundo lugar, a esquerda não pode sustentar que em espaços onde há a presença de determinados desafetos políticos não se pisa. A defesa da democracia é maior. As mágoas — que devem sim ser endereçadas em outros momentos —, precisam ser deixadas de lado se o objetivo for a união pela democracia.

Esse movimento demanda uma complexa concertação. Para que seja sólido, é necessário tempo. O ato do próximo domingo não é ainda a expressão disso, não chega próximo ao que foram as "Diretas Já", como tentam fazer colar na opinião pública os organizadores do próximo ato.

O MBL e o Vem Pra Rua precisam primeiro criar legitimidade política para só então figurar como os puxadores da defesa da democracia a partir de agora.

Têm de abrir o diálogo, baixar o tom raivoso e debochado característico de suas redes sociais, escutar lideranças mais antigas e poderosas do que seus representantes, propor a união pública de opositores. Esse papel exige mais envergadura do que o MBL e o Vem Pra Rua têm atualmente.

Está no DNA de ambos a construção de um discurso que tende a extremismos e que colocou no poder Jair Bolsonaro. Vestiram verde e amarelo ao lado dos bolsonaristas, muitos pediram intervenção militar, e assim foram as ruas.

Mulher segura cartaz em defesa do AI-5 em ato convocado pelo MBL contra Lula em 2019 - Bruno Santos/Folhapress - Bruno Santos/Folhapress
Mulher segura cartaz em defesa do AI-5 em ato convocado pelo MBL contra Lula em 2019
Imagem: Bruno Santos/Folhapress

As lideranças partidárias históricas têm neste momento um papel fundamental.

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que pretende vencer as prévias partidárias para lançar candidatura em 2022, teria de abandonar sua postura arrogante de não conversar com Lula, como declarou no Roda Viva e em outras ocasiões. Ontem, ele disse ao UOL que estuda ir à Paulista no dia 12.

Doria admitiu que errou ao apoiar Bolsonaro, mas soube aproveitar a popularidade do atual presidente nas eleições de 2018. Agora, tem de reconhecer o papel de seu principal opositor na luta pela manutenção da democracia. A humildade não é um atributo característico do tucano paulista.

Um pouco mais à esquerda do espectro político está Ciro Gomes (PDT), que tem tentado se viabilizar como a opção ideal de uma terceira via e também estará nas ruas no próximo domingo.

Ele apoia o impeachment de Bolsonaro, mas também não quer conversa com Lula. O petista é o concorrente com maior potencial de ganhar a disputa de 2022. Ciro precisaria se afastar da postura que tem tomado desde antes do segundo turno, em 2018, e operar em tom conciliador, o que não é de sua natureza.

Nessa orquestra da democracia, há também o ex-ministro Gilberto Kassab (PSD), que tem feito costuras consistentes e poderosas nos bastidores. Agora, ele também apoia o impeachment de Bolsonaro e lançou o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM), como seu candidato no próximo pleito. A presença de Kassab seria fundamental em uma ampla frente a favor da democracia.

Manifestantes contra o presidente Jair Bolsonaro pintam bandeira no Vale do Anhangabaú, em São Paulo - Ricardo Matsukawa/UOL - Ricardo Matsukawa/UOL
Manifestantes pintam bandeira do Brasil durante o Grito dos Excluídos no último dia 7 de setembro
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

Do lado dos partidos de esquerda, é preciso entender que há momentos, como o atual, em que não há tempo para chorar mágoas antigas. O coordenador do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), Guilherme Boulos (PSOL), em entrevista ao UOL News no 7 de Setembro, afirmou que é preciso "unir as forças democráticas", mas que nem por isso se juntaria a uma manifestação convocada pelo MBL.

Presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, também disse ao UOL que o partido não está convocando sua militância para o ato do dia 12. "Mas ninguém está impedido de participar de atos contra Bolsonaro. Achamos, entretanto, que só conseguiremos um movimento forte com a construção conjunta das forças democráticas de um grande ato, e estamos dispostos a isso", disse.

Defender a democracia é algo maior do que vencer por agora a eterna disputa entre esquerda e direita. Será necessário modular esse discurso em outro tom.

Essa configuração ampla exige também a presença de mulheres no desejado comício da democracia. A senadora Simone Tebet (MDB-MS), que já confirmou presença, será uma voz importante. Sua postura enfática e estratégica na CPI da Covid não deixa dúvidas de que a senadora atua no campo democrático e tem força aglutinadora para promover a urgente união de diferentes setores.

No palco da defesa da democracia, a presença do movimento negro também é fundamental: negros são a maioria entre os brasileiros e o racismo tipicamente nacional há tempos não se mostrava de forma tão descarada como sob o bolsonarismo.

A população negra é a que mais sofre os efeitos da inflação, da alta dos alimentos, da pandemia. Se precisamos reeditar um movimento semelhante às Diretas Já, isso só acontecerá com lideranças negras como foi Lélia Gonzales na conquista de democracia nos anos 1980. Temos grandes representantes hoje, como Sueli Carneiro, como Vilma Reis.

A tão falada e fragmentada frente ampla tem de aglutinar mais intelectuais, artistas, sindicatos, movimentos sociais, empresários, famílias, e todo e qualquer setor da sociedade que se interessa por um país que garante direitos a todos e todas. Há contexto que exige essa união.

Precisamos criar as condições para o diálogo com respeito, que ajude a preservar o Brasil no que temos de mais belo, de mais rico, de mais autêntico. O esgoto que emergiu e que tenta invadir o Supremo Tribunal Federal pode ser barulhento, mas não representa quem somos.

Em 25 de janeiro de 1984, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, mais de 1,5 milhão de pessoas se uniram no movimento pelas Diretas Já. No ato, estavam presentes políticos como Tancredo Neves, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Orestes Quércia, Franco Montoro, Ulysses Guimarães, Leonel Brizola, artistas como Chico Buarque, Martinho da Vila, Fafá de Belém, Taiguara, Beth Carvalho, Christiane Torloni, Osmar Santos, Juca Kfouri, entre muitos outros.

Nossa versão atual da defesa da democracia tem de ser proposta com urgência e robustez. O Brasil tem pressa. Precisamos restabelecer o diálogo e o respeito já, para começo de conversa.

Multidão durante comício pelas "Diretas Já, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo (SP), em 1984 - Renato dos Anjos/Folhapress - Renato dos Anjos/Folhapress
Multidão durante comício pelas "Diretas Já, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo (SP), em 1984
Imagem: Renato dos Anjos/Folhapress