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Maria Carolina Trevisan

REPORTAGEM

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Volta de Caboclo legitima cultura do abuso, aponta parecer pedido pela CBF

TRT afasta Rogério Caboclo por um ano para investigação sobre assédio sexual - Reprodução/CBF
TRT afasta Rogério Caboclo por um ano para investigação sobre assédio sexual Imagem: Reprodução/CBF

Colunista do UOL

17/09/2021 04h00

A CBF (Confederação Brasileira de Futebol) pediu um parecer da filósofa e feminista negra Djamila Ribeiro sobre as consequências para a entidade caso Rogério Langanke Caboclo, presidente da CBF envolvido em denúncias de assédio sexual e moral, volte ao cargo.

Trata-se de uma atitude inédita da CBF no que diz respeito aos direitos das mulheres: aponta para um o interesse em mudar a cultura de discriminação e abuso contra a mulher presente no Brasil e muito predominante no futebol, incluindo a própria CBF. Reflete uma demanda mundial e, também, posicionamentos de patrocinadores.

O documento teve assessoria jurídica das advogadas Bianca Dias Sardilli e Ligia de Souza Cerqueira, membros do Moraes Pitombo advogados. Caboclo pode retomar o exercício de sua função de presidente da entidade imediatamente se a árbitra de emergência, Paula Forgioni, escolhida pela Câmara de Arbitragem, sustar os efeitos da Assembleia Geral Administrativa realizada em 3 de agosto de 2021 e impedir uma nova assembleia.

O parecer pedido a Djamila e obtido pelo UOL, afirma que diante das evidências, relatos e contextos que configuram a relação de poder, houve assédio sexual por parte do presidente da instituição. De acordo com o artigo 216-A do Código Penal, assédio sexual é crime e tem pena de detenção de um a dois anos: "Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função."

No texto, Djamila Ribeiro avalia que as condutas de Caboclo no exercício de um cargo de liderança são "absolutamente inadequadas, traduzindo um comportamento antiético incompatível com a posição".

Reincorporar Caboclo à CBF, seria legitimar não só a violência contra a mulher dentro da entidade de futebol, mas também nos estádios, ambientes corporativos e sociedade de maneira geral. "O sistema de garantias constitucionais determina a paridade de tratamento de sexo e de gênero, em especial as normas e princípios constitucionais sobre os quais se alicerçam as normas penais e de direito público que disciplinam e punem os casos de assédio sexual e assédio moral, sobretudo no ambiente de trabalho", pontua o documento.

A volta de Caboclo, segundo demonstra o parecer, teria como consequência expor a denunciante, outras mulheres e funcionários a riscos. "Os riscos imediatos são o constrangimento à denunciante; sensação de iminente retaliação, que possui, por sua vez, grandes chances de se materializar", considerando o comportamento intimidatório que o presidente da CBF apresentou, de acordo com as evidências presentes nos processos nos quais está implicado. Seria um "endosso da impunidade que fragiliza mulheres e reforça o lugar do abuso de poder", descreve o documento.

Haveria também prejuízos à imagem da instituição e consequências jurídicas, como aponta o relatório, com a possibilidade de "instauração de procedimentos internos, iniciados a partir da provocação de seus associados ou da própria sociedade brasileira (art. 86 do Estatuto CBF), bem assim procedimentos no âmbito do Ministério Público voltados a obrigar a CBF a se comprometer a coibir casos de assédio sexual no ambiente corporativo, promover cursos relacionados ao tema, indenizar dano coletivo moral eventualmente apurado, dentre outros."

O parecer demonstra, em suma, que a gravidade das denúncias contra Caboclo obriga à necessidade de punição exemplar, o que não fere o princípio da presunção de inocência, um direito fundamental. "O afastamento cautelar do presidente da entidade não encontra qualquer óbice imposto pelo regime de direitos e garantias." O direito de defesa impede prisões automáticas mas não impede a existência de prisões cautelares, "desde que fundamentadas em premissas concretas".

Violência contra a mulher deve ser repudiada e não tolerada

No parecer encomendado à filósofa e feminista negra Djamila Ribeiro, há embasamento teórico sobre a importância da igualdade de gênero. Ela cita autoras e feministas históricas como Simone Beauvoir e pensadoras como a portuguesa Grada Kilomba para comprovar que os costumes não são alterados de forma instantânea, precisam de leis e atitudes consistentes ao longo do tempo. "A conquista de direitos fundamentais para as mulheres é uma das bases para a democracia, porém há um longo histórico de opressão a elas que ainda não acompanha os marcos legais."

O relatório indica dados do Anuário de Segurança Pública de 2020 que demonstram a gravidade da violência contra a mulher no Brasil: a cada oito minutos uma mulher é estuprada, a maioria (57%) com 13 anos no máximo. Há também números que provam a profundidade e amplitude do assédio e constrangimento de mulheres no ambiente de trabalho, retratados em pesquisas de organizações de mulheres como o Instituto Patrícia Galvão.

Djamila também aborda a importância do futebol para o brasileiro. Uma "paixão nacional, com poder sobre clubes de todo país, inúmeros jogadores e jogadoras de futebol, empresários, além de sua fundamental posição perante empresas de telecomunicação, rádio, redes sociais". O parecer constata que Caboclo, ou qualquer pessoa que esteja no exercício do cargo de presidente da CBF, está em posição de muito poder. Não violar os direitos das mulheres em lugar com tamanho poder deveria ser uma premissa.

A condição social de Caboclo também o favorece. No parecer consta o fato de o denunciado seguir trabalhando sob efeito de embriaguez, o que mostra uma posição de poder, uma vez que o mesmo não seria permitido ao porteiro da CBF, por exemplo. É também por isso que foi permitido, até agora, ao presidente da CBF tratar funcionários — em especial, funcionárias — com palavras agressivas de cunho sexual, palavrões e xingamentos.

Seis medidas são indicadas como melhores práticas para mitigar situações de abuso de poder, assédio sexual e moral: criação de sistemas independentes de apuração de denúncias; protocolos preestabelecidos para apuração de denúncias; destinação de recursos para as vítimas durante o processo e apoio e suporte à carreira depois; criação e atualização de treinamentos obrigatórios sobre assédio sexual, com obrigatoriedade de participação por parte de colaboradores; criação de medidas voltadas à equidade e inclusão com a finalidade de melhorar a representatividade e a cultura inclusiva para todos; estabelecimento de mecanismos de afastamento preventivo do possível autor da agressão enquanto perdurarem as investigações.

O caso de Caboclo mostrou que havia um ambiente intimidador, constrangedor, insalubre e violento para as mulheres. A postura da CBF com o parecer pedido à Djamila Ribeiro, uma referência no feminismo negro, pode significar que a instituição máxima do futebol brasileiro queira, finalmente, agir como um ator relevante na manutenção dos direitos das mulheres. Por consciência, necessidade de se adequar aos padrões dos patrocinadores, justiça ou marketing.