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Observatório das Eleições

Ufanismo até certo ponto: a Justiça Eleitoral no Brasil

Estátua da Justiça do lado de fora do prédio do Supremo Tribunal Federal em Brasília -
Estátua da Justiça do lado de fora do prédio do Supremo Tribunal Federal em Brasília

15/11/2020 04h00

Marjorie Marona e Fábio Kerche*

Houve uma certa onda de ufanismo em relação à Justiça Eleitoral brasileira frente às incertezas da eleição presidencial nos Estados Unidos. Como lá não existe uma instituição nacional encarregada de regular o pleito, muitos lembraram de nossos juízes e promotores eleitorais e do seu papel de assegurar a observância das regras eleitorais. Alguns vibraram com o aparente contraste: no país do Norte, instabilidade e atrasos gerados pela baixa institucionalização; no país latino-americano, regularidade e agilidade assegurados por um modelo de governança eleitoral institucionalizado.

Contudo, é possível argumentar que, pelo menos nestas eleições, estamos testemunhando uma espécie de americanização do pleito. Graças aos variados instrumentos processuais, múltiplos pontos de acesso à justiça eleitoral e perfil dos legitimados à propositura das ações, diferentes interpretações de juízes e promotores sobre vários aspectos do processo eleitoral geram certa instabilidade também no Brasil.

O quadro foi agravado pela redução do tempo da campanha, que aprofunda o descompasso entre as dimensões política e jurídica das eleições. Em regra, não é possível vencer todas as instâncias de revisão judicial no período em que decorrem as eleições - muitas vezes, as decisões dos juízes de primeira instância geram efeitos irreversíveis. Na prática, embora a justiça eleitoral seja uma instituição com abrangência nacional, as decisões são tomadas por milhares de juízes, localmente.

Desde o registro das candidaturas, passando por cada ato da campanha eleitoral e o julgamento das contas, quase tudo pode ser objeto de disputa judicial. Nem mesmo o dia da votação escapa. Ao que tudo indica, os eleitores de Macapá terão que esperar por mais tempo para escolher seus representantes enquanto os dos outros municípios do Amapá, que enfrentam os mesmos problemas de falta de energia da capital, vão às urnas no próximo domingo. Na justiça eleitoral, o que vale para uns, nem sempre vale para outros.

Já no marco zero da construção de uma candidatura a justiça eleitoral apresenta-se. Se os partidos políticos são o primeiro filtro na construção da representação eleitoral no Brasil, já que as candidaturas são obrigatoriamente lançadas via agremiações partidárias, o segundo é a justiça eleitoral.

São os juízes eleitorais que definem se as candidaturas vão vingar. Há uma gama de possibilidades, legalmente previstas, para que a justiça eleitoral barre uma candidatura, indeferindo o pedido de registro. A mais comum é a ausência de requisito de registro, mas se destacam, também, aqueles indeferimentos fundamentados na Lei da Ficha Limpa (LC 64/90), incluídos aí os casos de abuso de poder, e na Lei das Eleições (L9504/97), geralmente por conduta vedada e gasto ilícito de recursos.

Do total 557.392 pedidos de candidatura para as eleições do próximo domingo, 19.316 foram consideradas inaptas pela Justiça Eleitoral. Isso significa que 3,47% dos candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador não puderam concorrer, por decisão judicial. Nos casos de indeferimento de registro, 75,26% dos candidatos ficaram de fora do pleito por ausência de requisito legal. O restante dos indeferimentos de candidaturas deu-se principalmente com base na lei da Ficha Limpa (12,71%), aí incluídos os casos de abuso de poder. Vale a pena registrar que a atuação da justiça eleitoral no julgamento dos registros de candidatura não é uniforme e guarda apenas relativa associação com o volume de candidaturas apresentadas em cada região do país.

A tutela e escrutínio judicial das virtudes do voto ameaça até as manifestações mais criativas de construção da representação política. Já registramos aqui a intervenção desestabilizadora da justiça eleitoral em face das candidaturas coletivas/compartilhadas, que saltaram de 13, em 2016, para 257, em 2020, segundo os dados da CEPESP/FGV.

Até que o Tribunal Superior Eleitoral se manifeste de forma definitiva sobre o tema, os eleitores seguem, às cegas, em direção às urnas no próximo domingo. Em Fortaleza, uma candidatura desse tipo está em situação precária, ao mesmo tempo que em outras cidades as candidaturas coletivas/compartilhadas não são ameaçadas.

Outro exemplo do paradoxo da justiça eleitoral, criada para gerar estabilidade, mas que, às vezes, gera o oposto, é encontrado em Porto Alegre. Na corrida à Prefeitura, José Fortunati (PDT), que vinha aparecendo bem posicionado nas pesquisas, renunciou a sua candidatura depois que seu vice foi barrado pela justiça eleitoral. O impacto sobre a corrida eleitoral de um candidato empatado em segundo lugar em uma eleição que deve ir para o segundo turno a menos de uma semana das eleições não é um elemento para a coluna de pontos positivos para nosso sistema.

No Rio de Janeiro - e desta vez vinculada à uma candidatura à vereança - outro político tradicional, Lindbergh Farias (PT), redireciona parte de seus esforços de campanha para convencer os eleitores de que seu voto não será em vão frente a incertezas geradas por uma decisão da Justiça eleitoral e pela demora das outras instâncias.

Da tutela e escrutínio das virtudes do voto, a justiça eleitoral avançou também para a da doação dos cidadãos. Uma batalha judicial foi travada em torno de uma live que Caetano Veloso anunciava como evento de arrecadação para as campanhas de Manuela D'Ávila (PCdoB) e Guilherme Boulos (Psol) às prefeituras de Porto Alegre e São Paulo, respectivamente. Neste caso, a candidatura do PCdoB mobilizou sua assessoria jurídica e conseguiu reverter a decisão da justiça eleitoral gaúcha, garantindo a realização do evento.

Teve também repercussão a proibição da divulgação de pesquisa eleitoral realizada pela Datafolha na cidade de São Paulo atendendo ao pedido do candidato apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro, Celso Russomanno (Republicanos). A batalha de liminares poderia resultar em um quadro sui generes em que o eleitor de São Paulo seria privado de avaliar as chances dos candidatos e, eventualmente, votar estrategicamente, enquanto que em tantas outras capitais e municípios os cidadãos estariam mais plenamente informados. Felizmente, a decisão foi revertida a tempo.

A agilidade na divulgação dos resultados eleitorais e a segurança das urnas e das eleições, sob responsabilidade da Justiça Eleitoral, é admirável e nos diferencia de outras experiências democráticas. Mas essas tarefas são apenas uma parte da responsabilidade de juízes e promotores eleitorais. Quando se observa o quadro todo, agravado por uma corrida eleitoral tão curta, é prudente trocar o ufanismo por cautela e espírito crítico.

*Marjorie Marona é graduada em Direito (2011), mestre em Filosofia do Direito (2004) e doutora em Ciência Política (2013) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora do Departamento de Ciência Política da UFMG. Coordenadora do Observatório da Justiça no Brasil e na América Latina (OJb-AL/UFMG). Pesquisadora do INCT/IDDC.
Fábio Kerche é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Ciência Política, todos pela USP. Pesquisador titular da Fundação Casa de Rui Barbosa e professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciência Política da UniRio e do Iesp/UERJ. Foi visiting scholar na New York University (2000) e research fellow na American University (2016/17).

Esse texto foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições de 2020, que conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras e busca contribuir com o debate público por meio de análises e divulgação de dados. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br