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Paulo Sampaio

Quarentena pode fazer TOC e fobia social parecerem "adequados", diz médico

Recomendações na quarentena incluem lavar as mãos sempre que possível - Foto: iStock
Recomendações na quarentena incluem lavar as mãos sempre que possível Imagem: Foto: iStock

Colunista do UOL

22/04/2020 15h43

Pessoas que sempre tiveram "mania" de lavar as mãos e já o faziam várias vezes por dia antes da pandemia de covid-19 podem estar se sentindo "adequadas" na quarentena.

Diagnosticadas com transtorno obsessivo compulsivo (TOC) de higiene, elas acreditariam que sua obsessão com limpeza tem correspondência com as recomendações das autoridades de saúde do mundo todo, que orientam a população não só a lavar as mãos ou desinfetá-las com álcool gel, como a tomar banho e lavar as roupas sempre que chegarem em casa.

Segundo o médico Felipe Corchs, coordenador do ambulatório de trauma do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, embora a quarentena tenha levado a um aumento no consumo de ansiolíticos, houve uma inesperada ocorrência de casos de pacientes que "melhoraram". E não só os que sofrem de TOC de higiene.

Os agorafóbicos, por exemplo, que evitam estar sozinhos em lugares públicos, eventualmente se sentem confortáveis seguindo a campanha de prevenção promovida pela Defesa Civil, que lembra que "vencer o coronavírus depende de todos nós". "Lave bem as mãos e evite aglomerações."

Abaixo, Corchs fala mais de transtornos e quarentena.

UOL - Em grandes crises como a pandemia do covid-19, sempre se fala muito em piora nos níveis de ansiedade e depressão. Isso se confirmou?

Felipe Corchs - Parece que sim. Temos visto inclusive um aumento de consumo de medicações ansiolíticas. Mas, curiosamente, enquanto alguns apresentaram intensificação dos níveis de depressão ou ansiedade, o que era nossa predição, outros melhoraram — o que foi um tanto inesperado para nós.

Como se deu isso?

Algumas pessoas que têm TOC de higiene, por exemplo, como lavar as mãos a todo instante ou tomar muitos banhos, estão se sentindo adequadas em suas compulsões. Assim como fóbicos sociais, que podem sentir menos necessidade de interação com outros indivíduos ou até uma vantagem em serem dessa forma, em um momento em que não há tanta pressão para mudar.

Mas é cedo para dizer se são casos isolados. Estamos preparando uma pesquisa a fim de investigar melhor isso.

Temos duas principais hipóteses. Uma é que exista uma redução de estressores profissionais e urbanos, como os que vemos na locomoção pela cidade nos horários de pico. Outra é que algumas pessoas possam se sentir mais protegidas dos estímulos específicos que causam ansiedade em seus transtornos ou mesmo mais adaptadas por serem do jeito que são.



Os agorafóbicos entrariam nesse rol? (A agorafobia é um transtorno ligado ao pânico, que leva a pessoa a ter medo de sair de casa sozinha, de estar em lugares públicos ou no meio de multidões sem conhecidos por perto para pedir ajuda em caso de emergência. O agorafóbico receia por antecipação que alguma situação de perigo vá acontecer e que ele não terá uma saída disponível).

Acredito que sim. Não sofrer pressão para sair à rua pode ajudar muito essa pessoa a se sentir confortável. No caso da quarentena, ainda há uma recomendação das autoridades de saúde para que a população fique em casa. Isso, eventualmente, a levaria a crer que seu medo é plausível. Mas, novamente, cada caso é um caso e podemos encontrar os que pioram também.

A quarentena pode estar mascarando os sintomas dos transtornos?

Uma pessoa com lesão numa articulação como o joelho terá menos dor se não for forçada a correr, mas eu não diria que o repouso mascara os sintomas. Sem dúvida, eles ficam menos evidentes, o que, por outro lado, revela a relação dos transtornos de ansiedade com o ambiente em que vivemos, especialmente o sócio-cultural. É um sinal de que deveríamos pensar sobre o estilo de vida que nossa cultura vem adotando.

Como é possível verificar a adequação das compulsões da pessoa à quarentena? Há casos de redução da medicação, ou da dose?

Basicamente, pelo relato de melhora mesmo. Não chegamos a reduzir a medicação, porque em geral as doses contemplam a prevenção de recaídas a longo prazo também, não apenas o alívio temporário dos sintomas.

Antes de considerar a dose de um medicamento, é preciso cuidado para não tomar como base apenas uma fase atipicamente positiva.

Estar momentaneamente na "zona de conforto" pode surtir o efeito de "cura"? É possível imaginar que, na "volta" do isolamento social, o transtorno reapareça agravado?

São vários os pontos a serem considerados nessa pergunta. Em psiquiatria, por diversos motivos, não usamos o termo "cura". Usamos remissão dos sintomas. Eu diria que algumas pessoas chegam a níveis sintomáticos que de fato equivalem aos considerados como remissão quando estão na zona de conforto.

Porém, pela segunda parte da pergunta, percebo que você já intuiu que, nessas circunstâncias, não é possível considerar um caso de remissão. É provável que ao menos parte disso reapareça com o tempo, especialmente se a pessoa voltar ao estilo de vida antigo.

Surgiu algum transtorno novo durante a quarentena, ou alguma combinação de transtornos que valha registro?

Observamos, claro, que o receio de contrair o SARS-CoV-2 (causador da covid-19) foi incorporado a transtornos já existentes. Uma pessoa com TOC de contaminação não teria medo do vírus antes de ele aparecer. Agora, pode ser parte do seu problema.

Quem se mostra mais resiliente na quarentena, o homem ou a mulher?

Não sei se já existe alguma informação sólida a esse respeito, mas não acredito que haja diferença em relação a outros estressores dessa classe. Vale só destacar que resiliência não é o oposto de psicopatologia.

Ela pode ser parte de um transtorno?

A resiliência é a capacidade de se recuperar quando um estressor cessa. Uma cartilagem que se dobra quando uma força é aplicada a ela, volta ao formato anterior quando a força é retirada. As pessoas podem apresentar essa característica, mesmo tendo transtornos psiquiátricos.

Já deu para avaliar o impacto psicológico da pandemia em indivíduos que costumavam ter atividade sexual intensa, com muitas pessoas, inclusive desconhecidas, e agora ouvem diuturnamente a recomendação de que devem evitar o contato mais básico?

Esse tema ainda não apareceu de maneira expressiva nas sessões e contatos com os pacientes. Arrisco dizer que ainda virão muitas questões relacionadas a isso.

Existe algum tipo de profilaxia para transtornos causados pelo isolamento social?

Há evidências indiretas, derivadas de pesquisas em laboratório ou de situações de isolamento por depressão, que sugerem que o engajamento em atividades que nos fortalecem emocionalmente, ou, em linguagem mais metafórica, "alimentam nossa alma", podem ter resultados positivos. O desafio é achar alternativas que funcionem no isolamento. Na maioria dos casos, é possível encontrar uma saída.