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Paulo Sampaio

Reunião de dependentes de amor e sexo tem o dobro de pessoas na quarentena

Homem assistindo pornografia  - Getty Images/iStockphoto
Homem assistindo pornografia Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

31/05/2020 07h00

Desde que o isolamento social levou os dependentes de amor e sexo anônimos (DASA) a substituírem os encontros presenciais pelos virtuais, o número de participantes tem dobrado.

"Na nossa sala costumavam ir de 2 a 20 companheiros, e agora vão mais de 40. As reuniões temáticas tem agregado até 90 pessoas", diz o engenheiro químico Antônio*, 56. "A grande vantagem do on-line é que pode ajudar muito mais gente, de lugares muito mais distantes."

O DASA é uma ideia importada dos Estados Unidos, onde o programa existe desde 1976. Um membro dos Alcoólicos Anônimos se deu conta de seus problemas em relação ao amor e ao sexo, e fez uma adaptação para o "Sex and Love Addicts Anonymous - SLAA". A versão brasileira surgiu em 1993, no Rio, e no ano seguinte já se promovia uma reunião em São Paulo. Hoje, está em todos os estados do País. Assim como nos EUA, aqui o grupo se define como "irmandade".

Recaída na pornografia

Frequentador do DASA desde 2015, Antônio comemora o alcance das reuniões virtuais, mas lamenta que a quarentena imposta pela pandemia de covid-19 o tenha levado a "recair em padrões de dependência":

"O confinamento ativou antigos gatilhos meus. A Internet e os sites pornográficos, filmes e fotos eróticas são uma questão para mim. Eu já tinha resolvido isso, e conseguia trabalhar no computador sem acessar esse conteúdo, mas agora com a ansiedade e os problemas no trabalho, sem vendas, sem comissão, e outros em casa, fiquei entregue à compulsão novamente."

Graças às reuniões on-line, ele diz que está conseguindo "parar com isso".

Corrompido por dentro

Casado pela segunda vez, Antônio conta que passou a buscar sexo na internet ainda no primeiro casamento. "Comecei a conversar com outras mulheres nas salas de bate papo, até conseguir encontrá-las. Cheguei a ter várias amantes ao mesmo tempo e, por causa das traições e mentiras, pus fim a um casamento de 25 anos, com três filhos adolescentes."

Os sites pornográficos e as salas de bate papo faziam o engenheiro se sentir como que "contaminado por um vírus de computador". "Eu não podia conviver com outras mulheres sem ficar olhando com segundas intenções ou malicia, estava corrompido por dentro."

Memória eufórica

Diferentemente das reuniões presenciais, nas virtuais os participantes não se veem, só se ouvem. Elas são realizadas inteiramente por áudio. De acordo com a porta-voz do DASA, trata-se de uma medida tomada para evitar que a patologia do dependente seja despertada.

"Preservamos a identidade dos membros e evitamos nos expor em fotos ou pelas câmeras, para não recair nos padrões comuns da doença, como exibicionismo, sedução, fantasia, voyeurismo etc. Se alguém entra com vídeo ou alguma imagem que possa despertar a 'memória eufórica' de um participante, pedimos para que a pessoa saia e retire a foto", diz.

Só para mulheres

A porta-voz acredita que essa peculiaridade da reunião virtual, de não permitir que as pessoas se mostrem, pode ter levado à afluência maior do público feminino: "Os homens sempre foram maioria na irmandade, até porque as mulheres não têm tanta facilidade de se abrir em grupo. Mas percebo que há maior participação delas nas reuniões on-line do que nas presenciais", diz.

Não por acaso, na semana passada o DASA inaugurou uma reunião apenas para mulheres — heterossexuais e lésbicas. Ocorre todos os domingos, às 10h. "Elas se sentem mais à vontade para partilhar suas histórias do que numa sala com preponderância masculina, como em geral são as reuniões. Parece que deu certo."

Não é segregação?

"O DASA não entra nesse tipo de discussão. As salas com propósito especial têm a finalidade de acolher determinados membros, de modo que eles fiquem à vontade para partilhar. Chamamos de 'partilhas' depoimentos onde a pessoa fala de si e de sua recuperação, em geral por 5 a 7 minutos, de forma a que 'o remédio entre pelo ouvido (tanto para dos outros como o da própria pessoa) e o veneno saia pela boca', numa terapia de espelhos e não de conselhos."

Além da sala das mulheres, a irmandade abriu outra com propósito especial, "para trabalhar a anorexia afetiva/sexual". A reunião é aos sábados, às 20h30.

Rejeição compulsiva

Anorexia afetiva/sexual é a "rejeição compulsiva de dar e receber nutrição social, sexual e emocional". Para a autônoma Rita, 30 anos, que diz sofrer de ambas, "a quarentena teve um impacto negativo". "O isolamento social é tudo o que esse meu padrão deseja", diz ela.

Rita procurou o DASA porque se sentiu "imersa num relacionamento doentio, puramente sexual, com uma pessoa com quem eu não me identificava": "Escolhi a dedo, intencionalmente. Eu sabia que daquele homem eu não ia gostar nunca, era somente para sexo", conta.

Guia de relacionamento

A princípio, ela se achava "muito bem resolvida sexualmente, apenas vivendo uma fase de afastamento afetivo". "Percebi então que sempre fui anoréxica, tanto em meus namoros como em meus três casamentos, e que nunca me envolvi de verdade com ninguém."

Ela afirma que isso passou: "Agora, procuro me trabalhar através da aplicação das tradições — que são um guia de relacionamento saudável — e me sinto mais capacitada a não mais usar meus padrões de sedução e manipulação."

Salto na afluência

De acordo com a porta-voz do DASA, a irmandade tem recebido desde o começo da quarentena de um a dois novos participantes a cada reunião. Em geral, o número máximo de pessoas nas presenciais era 40; agora, nas on-line, chega a 60. "Isso quando tem um depoimento longo. Quando não, a afluência é até maior", diz.

Para boa parte dos participantes, o ingresso no DASA evitou um destino trágico: "Foi o que me salvou da morte, da cadeia e do psiquiatra", diz o treinador físico Rogério, 48. Ele se refere às reuniões presenciais, que, no seu entender, não se comparam às virtuais. "Prefiro o olho no olho", diz.

Sem anestésico

Há três anos sem uma "relação sexo-afetiva", Rogério explica que "não apareceu nenhuma que fosse saudável". "Não uso mais relação sexual sem envolvimento afetivo para anestesiar meus pensamentos, sentimentos e emoções", diz.

O treinador afirma que todos os aparelhos que utiliza para entrar na internet "são bloqueados para pornografia". "Não acesso mais facebook, instagram, app de relacionamentos. Consigo ficar comigo, hoje, sem nenhum padrão de compulsão sexual."

Última questão:

A partir de que ponto alguém que sofre por amor, ou gosta muito de fazer sexo, pode ser considerada doente?

Porta-voz: "Somente a própria pessoa pode avaliar se a sua dependência atingiu um nível patológico, que faz mal a ela (ou até a quem está do lado dela), e que demanda tratamento. Em irmandade dizemos que o Programa não é para quem precisa, é para quem QUER, porque nosso Programa é simples, mas não é fácil. Demanda perseverança e muito trabalho..."

* os nomes foram trocados para respeitar o anonimato