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Paulo Sampaio

Fui a mulher mais requisitada de 1986, diz capa de Playboy Marcia Dornelles

Uma das dez fotos publicadas na edição de novembro de 1985 da "Playboy" - Fotos: Arquivo Pessoal
Uma das dez fotos publicadas na edição de novembro de 1985 da "Playboy" Imagem: Fotos: Arquivo Pessoal

Colunista do UOL

09/09/2020 04h00

Márcia Dornelles posou apenas uma vez para a revista "Playboy", e não estava nua na capa, usava um biquíni. No entanto, aquelas dez fotos foram suficientes para garantir a ela um lugar de destaque na galeria das homenageadas eternas. "Fui a mulher mais requisitada do Brasil em 1986", recorda ela, com boa dose de humildade, aos 56 anos. No imaginário de quem consumia a revista, ela continuou sendo evocada em 1987, 88, 89, até hoje.

Sim, o biquíni era tão minúsculo que a deixava mais nua.

Na capa, não

A história de Marcia é um clássico, "tudo aconteceu totalmente por acaso". Um dia, ao acompanhar uma amiga em um teste de modelo publicitário, a escolhida foi ela. Não para o comercial, mas para posar na "Playboy". Estava lá um "olheiro" da revista que, não à toa, encasquetou com a morena de 22 anos, 1,75m, olhos verdes, corpão escultural...

A primeira reação de Márcia ao convite foi: "Tá louco? Meu pai me deserda!" Mas o dinheiro era bom. E o olheiro, insistente. Depois de muita resistência, ela acabou topando, com a condição de não sair na capa — nem mesmo de biquíni. "Tanta gente pagando para aparecer, e eu querendo me esconder", diz ela, rindo. "Na minha cabeça, se as fotos estivessem dentro da revista, ninguém ia ver."

Filha de evangélicos, ela topou posar nua, com a condição de não aparecer na capa; quando a revista chegou às bancas, surpresa! - Foto: Reprodução - Foto: Reprodução
Filha de evangélicos, ela topou posar nua, com a condição de não aparecer na capa; quando a revista chegou às bancas, surpresa!
Imagem: Foto: Reprodução

Sonho da casa própria

Apesar da natureza independente de Márcia, que pegou 35 caronas para vir de Uberaba, em Minas Gerais, onde nasceu, para o Rio, ela queria poupar os pais evangélicos daquela exposição. Imagine o escândalo da nudez total, em elaborados alongamentos de lombar, pernas e braços, veiculada em uma cidade de menos de 100 mil habitantes (na época).

Mas o sonho da casa própria ofuscou o resto. "Eu dividia quarto com outras meninas, era uma bagunça, fui roubada várias vezes, toda hora eu estava me mudando. Como se diz em Minas, eu vivia com a mala nas costas."

A caminho da padaria

Enfim, ela acabou capitulando. Com o dinheiro do cachê, deu entrada em um apartamento, guardou uma parte para pagar as parcelas, e ainda comprou um carro.

Era tão jovem e disposta a "vencer na vida", que, em seu entusiasmo, assinou sem ler o contrato com a revista, que era "cheio de letrinhas do tamanho de uma cabeça de alfinete". As fotos foram feitas em junho de 1985, na praia da Feiticeira, litoral de São Paulo, mas a edição chegou às bancas só em novembro. Pegou-a de surpresa:

"Pense que não existia instagram, facebook, orkut, nada. Não tinha essa história de "viralizar", e a gente saber antes. Então, eu estava saindo para ir à padaria, de manhã, quando dei de cara com o cartaz da capa da revista cobrindo toda a lateral da banca de jornal da esquina. Tomei um susto", diz ela, reproduzindo um pouco da empolgação da época.

Telefone fixo

Aparentemente, Marcia não se sentiu "traída" pelos editores. As coisas passaram a acontecer tão rapidamente que ela nem tinha tempo para prolongar eventuais contrariedades. "Quando eu voltei com o pão, os porteiros já estavam esperando com a revista na mão, para eu dar autógrafo."

Em um primeiro momento, aquilo a deixou atordoada. "Eu não vim para o Rio para ser artista, celebridade. Vim porque minha cidade não oferecia oportunidades. Em casa, dei a desculpa de que viria para fazer faculdade."

Em sua estreia nua, nas bancas, ela já cursava turismo e trabalhava em uma joalheria como relações públicas. "Eu tinha inglês fluente, então atendia a clientela gringa."

Uma hora depois de chegar da padaria, "o mundo todo já tinha ligado". "A gente só usava telefone fixo!", lembra.

Em um editorial de moda, antes de posar para a Playboy; para poder se matricular em um curso de modelo no Senac, exigiram que ela emagrecesse 10 kg: "Em duas semanas, tinha conseguido" - Foto: Arquivo Pessoal - Foto: Arquivo Pessoal
Em um editorial de moda, antes de posar para a Playboy; para poder se matricular em um curso de modelo no Senac, exigiram que ela emagrecesse 10 kg: "Em duas semanas, tinha conseguido"
Imagem: Foto: Arquivo Pessoal

Tudo por dinheiro

Na época, a própria "Playboy" se ocupava de assessorar a "coelhinha" da capa. Márcia esteve no programa de Hebe Camargo, no de Faustão ("Perdidos na Noite"), de Miele, Chico Anysio, Agildo Ribeiro e Jô Soares. "Como eu era falante, engraçada, rápida, todos eles me chamavam para voltar", conta. "Aí, começaram a me pagar pelas participações."

Aos poucos, naturalmente, ela passou a ser convidada para fazer pontas em humorísticos como "A Praça é Nossa" e "Viva o Gordo". Interpretava o monossilábico personagem da "tolinha gostosa". Quando perguntam se a eventual pecha de "mulher-objeto" a incomodava, ela responde com um "Ãhn?", de estranhamento. "Nadinha", completa. Pagando, ela aceitava tudo. Conta sem problema que foi francamente oportunista.

"Minha vida estava mudando rapidamente, eu tinha de aproveitar aquele momento. Pensei: 'Vai depender de mim continuar a ser isso que eles querem que eu seja, e mostrar minha cara, minha boca, minha bunda, até cair tudo, ou estudar, me preparar e seguir carreira'.

Matriculada em dois cursos de teatro, ela conta que se formou e obteve o diploma. Ouvindo-a falar da importância do certificado enquanto prova de que havia se profissionalizado (como se um diploma imprimisse talento à pessoa), conclui-se que ela de fato nunca almejou ser atriz.

Chacrinha, samba e teatro

Não importa. O fato é que Márcia Dornelles passou cerca de dez anos colhendo os louros da exposição. Fez cinema, TV, algumas peças, modelou, participou do júri do programa do Chacrinha, apareceu nas capas de todas as revistas de "moda e comportamento" da época, Nova, Claudia, Desfile, Criativa, e desfilou nas escolas de samba mais bombadas, Mangueira, Salgueiro, Portela, Mocidade, União da Ilha, Beija Flor...:

"O Carnaval estava incluído na minha trajetória artística", diz. "Eu costumava desfilar em cinco escolas numa noite só. Chegava na dispersão, já saía correndo para a concentração." De novo, não se pode dizer que ela amava Carnaval. Desfilava por que atraía novas propostas de trabalho. Participação em bailes de debutantes, apresentações internacionais de samba, recepção em feiras etc.

Na capa da edição de Carnaval da revista Fatos & Fotos (à dir. com plumas verdes na cabeça); com Luiza Brunet na bancada do júri do Chacrinha; e com Claudio Cunha no espetáculo "O Analista de Bagé" - Fotos: Arquivo pessoal - Fotos: Arquivo pessoal
Na capa da edição de Carnaval da revista Fatos & Fotos (à dir. com plumas verdes na cabeça); com Luiza Brunet na bancada do júri do Chacrinha; e com Claudio Cunha no espetáculo "O Analista de Bagé"
Imagem: Fotos: Arquivo pessoal

Pra cima deles!

Durante os anos dinheiristas, ela diz que namorou muita gente e não namorou ninguém. "O cara tinha de ter uma cabeça muito boa para ficar com uma mulher que saía em cinco escolas de samba em uma noite. Mas eu nem estava interessada nisso. Naquele momento, eu desencanei total de homem."

Pergunto se foi vítima de violência sexual, abuso, "teste do sofá": "Nunca, pode acreditar", diz ela, que está preocupada com o "teor da matéria". Vamos combinar que, para o padrão de "virilidade" dos anos 1980, quando a patrulha feminista ainda não era uma ameaça ao escracho machista, Marcia teve muita sorte. É preciso um anjo da guarda muito forte para sair sem arranhões de 35 caronas (três de caminhão) e uma capa de Playboy (ainda que de biquíni).

Quando conta a forma como lidou com aquele momento, Márcia dá a impressão de ter se munido para uma guerra. "Eu me lembro que o Oswaldo Loureiro, diretor do (espetáculo) 'Analista de Bagé', em que eu contracenava com o Claudio Cunha e fazia uma cena sozinha embaixo de um holofote, me disse: 'Márcia, guarda uma coisa. Em cena, você não pode temer o público. Parte pra cima deles!' [ela faz o movimento brusco de uma guerreira] Eu era muito jovem, estava fazendo minha primeira peça, nunca esqueci disso. Tomei como lição para a vida."

Piquenique no parque

A conversa com a coluna foi no domingo, véspera do feriado de 7 de setembro, no movimentado Parque dos Partins, à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas. Márcia, o genro e a única filha dela, Rebecca, que estava completando 31 anos, produziram um pic-nic para comemorar o aniversário.

Rebecca conta que chegou a se sentir discriminada na escola, pelas escolhas da mãe — referindo-se à exposição de Márcia como símbolo sexual —, mas hoje entende perfeitamente que "ela fez o que foi preciso, naquele momento, para sobreviver". "Minha mãe é muito guerreira", diz.

Com a filha, Rebecca, que comemorou 31 anos no dia 6 de setembro - Foto: Arquivo Pessoal - Foto: Arquivo Pessoal
Com a filha, Rebecca, que comemorou 31 anos no dia 6 de setembro
Imagem: Foto: Arquivo Pessoal

Óculos de sol e decote

Márcia marcou nosso encontro em um dos deques do parque, e a princípio conversamos ali por cerca de uma hora. Ela chegou usando óculos de sol, vestido frente única longo e bem ventilado, com um generoso decote à frente, e rasteirinhas pretas.

Sem nenhuma maquiagem nem sinal de intervenção estética, ela diz que faz questão de deixar no rosto as marcas do tempo — que não são tantas assim. Diz que é "zero vaidosa".

Não sente falta do assédio (do bem)? "Nenhuma. Eu sei que as pessoas que se lembram de mim daquele ano em que eu era uma pintura, um espetáculo, podem ficar chocadas e dizer: 'Meu Deus, como a Márcia está velha!'. Sinto muito. Uma mulher de 56 anos não vai ter os mesmos atrativos físicos de uma de 28."

A verdade é que ela continua magra, esguia e falante, e em nenhum momento apela para caras ou bocas que deram certo no passado. Tem uma sensualidade, digamos, adaptada a idade atual. Como a maioria das mulheres que foram muito bonitas e muito desejadas, Márcia guarda um charme residual indefectível.

No filme "O Diabo na Cama", ela contracenou com o ator italiano Lando Buzzanca - Foto: Reprodução - Foto: Reprodução
No filme "O Diabo na Cama", ela contracenou com o ator italiano Lando Buzzanca
Imagem: Foto: Reprodução

Fim de carreira, sqn

Ela conta que em 1994 abandonou a rentável colheita de louros iniciada em 1985. Depois de participar da novela "Perigosas Peruas"(1992), na TV Globo, em que fazia a irmã da personagem de Silvia Pfeiffer, ela resolveu se dedicar a outras carreiras. Aproveitou sua experiência de "estrategista" e passou a orientar as "Márcias recém-chegadas".

"Eu já pensava em fazer isso havia muito tempo. Sabia que eu era boa em criar estratégias e que havia muita gente precisando dessa assessoria. Era um mercado incrível. Por que então não fazer isso para as outras?"

O próximo curso foi o de marketing, ("que é o que eu sempre soube fazer"), e então ela enveredou por uma profícua carreira de produtora de artistas e assessora de imprensa.

Virando a chave

Ao mesmo tempo, encontrou Jesus. Tornou-se evangélica. A correria pela sobrevivência a qualquer custo não tinha sido, a longo prazo, saudável. Ela vivia um "vazio existencial" e precisou de mais respostas do momento oferecia. "Aquele ambiente era muito superficial, eu não achava ninguém que atendesse minhas expectativas. Nada me preenchia."

A busca pelo Senhor partiu dela — ninguém a conduziu à igreja. "Sempre acreditei em Deus, e o consulto para tudo. O consultei inclusive para saber se deveria dar esta entrevista. Se ele dissesse não, eu não estaria aqui." O encontro definitivo com Jesus se deu por volta de 1996 (ela diz que é "ruim para datas"). Quando fala da conversão, Márcia cita a necessidade de "arrepender-se".

De quê?

Ela tenta explicar melhor o termo. "Não é exatamente esse arrependimento...Fiz certas coisas que...não me arrependo, mas hoje não faria de novo."

Tipo?

"Não faria aquelas fotos (para a "Playboy")...não desfilaria no Carnaval."

E a carreira de atriz e modelo? "Isso tudo bem."

Sorte de um amor tranquilo

Apesar de ter vivido três anos com o pai de Rebecca, que é engenheiro, Márcia só considera como "casamento" os relacionamentos que teve depois da conversão. Primeiro, foi um profissional do mercado financeiro, com quem viveu entre 1999 e 2005; e, agora, um cristão da área de logística, que ela conheceu na igreja em 2013.

Pelo que ela conta, conseguiu "a sorte de um amor tranquilo" (Cazuza). Apaziguada, diz que o marido é parceiro, a apoia e dá suporte. "Quando me encontrei com Deus, não estava preocupada com casamento, mas foi justamente Ele que me preparou para o homem certo", acredita.

Passa pra outra

Para arrematar, pergunto pela segunda vez sobre as eventuais propostas indecentes que Márcia teria recebido quando estava com 20 e poucos anos, era linda, sozinha no Rio e buscava vencer na vida. Ela reage bem-humorada e, ao mesmo tempo, desconfiada: "Você já fez essa pergunta."

Expliquei que continuava surpreso em saber que ela sobreviveu ilesa à celebridade como símbolo sexual. "Sempre tive uma autoestima muito alta. Comigo era assim: 'Quer do meu jeito, ok. Não quer, tchau!'"

Em tempo:

Logo depois da entrevista, para desfazer a imagem de "durona, inatingível, tanque de guerra", Márcia passou um áudio dizendo que sim, claro que houve momentos difíceis, no auge da exposição, mas ela não podia parar para pensar nisso, não havia espaço para manobra.

"Eu vivia um personagem no teatro, outro na Sapucaí, outro na rua, outro na passarela, outro no elevador do prédio. Todos muito fortes. Só quando chegava em casa, e estava sozinha, eu me dava ao luxo de sentir alguma fragilidade."

Melhorou.