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Reinaldo Azevedo

Ficha Limpa: Nunes Marques está certo, e caso nada tem a ver com Bolsonaro!

Nunes Marques, ministro do Supremo: seu voto sobre trecho da Ficha Limpa - que não presta por inteiro, diga-se - está correto - Nelson Jr / STF
Nunes Marques, ministro do Supremo: seu voto sobre trecho da Ficha Limpa - que não presta por inteiro, diga-se - está correto Imagem: Nelson Jr / STF

Colunista do UOL

22/12/2020 07h05

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Pois é...

O presidente Jair Bolsonaro faz tantas e tais barbaridades que acaba virando uma muleta dos preguiçosos. Quando o analista não está disposto a pensar num determinado assunto ou quando alguém lhe sopra ao ouvido "Ah, isso é contra o combate à corrupção", então basta bater no presidente, denunciar um complô contra o bem, o belo e o justo e pronto! Tudo resolvido.

Nunes Marques, o ministro com menos tempo no Supremo, vira, assim, um saco de pancadas óbvio. Sim, já critiquei dois votos seus aqui: aquele, meio salomônico, sobre o direito à reeleição para as respectivas presidências da Câmara e do Senado e o dado sobre a obrigatoriedade da vacina.

No primeiro caso, nem ficou com a letra estrita da Constituição nem ficou com uma interpretação sustentável, ainda que eu dela discordasse, como sabem. Escolheu um meio de caminho que não era nem bola nem bule. No segundo, reconheceu que a obrigatoriedade da vacina é constitucional, mas tentou atrelar a imposição ao governo federal. Errou nos dois casos.

Agora há um terceiro voto que já nasce com gosto de escândalo — e, por alguma razão, tenta-se, de quebra, vincular seu voto ao interesse de Bolsonaro, embora não fique claro o que lé tem a ver com cré nesse caso.

O ministro, num ato que considero correto, suspendeu parte da caótica Lei da Ficha Limpa — e justamente um trecho que, com efeito, não faz sentido.

Está escrito no Artigo 1º, Inciso I, Alínea "e" da Lei Complementar 64:
"São inelegíveis para qualquer cargo os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:

E aí há a penca de crimes que determinam a inelegibilidade.

Atendendo a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade impetrada pelo PDT, o ministro concedeu liminar considerando inconstitucional o trecho "após o cumprimento da pena". A decisão valeria para casos futuros e para processos das eleições deste ano ainda pendentes de apreciação no TSE e eventualmente no STF.

O ministro está corretíssimo em essência. Eu apenas excluiria os casos em curso para evitar judicializações novas e faria valer o óbvio a partir de 2022. E é muito fácil defender a decisão de Nunes Marques, embora ele esteja apanhando como cão sarnento. Já li até coisas como: "Ministro quer que ficha suja seja candidato". Até parece que essa condição é uma imanência ou algo que cai do céu. É a lei que faz uma ficha ser suja ou ser limpa. Se a legislação muda, para situações futuras, o sujo pode ser limpo, e o limpo, sujo.

Às vezes, a própria imprensa confunde o estado de direito com fundamentalismo religioso, essencialista. É o mal que a Lava Jato inoculou nas redações. Mas quem vira empresário e fica rico é Sergio Moro, o profeta, né? Alguns jornalistas seguem apenas como porta-vozes bisonhos de gente com espírito de meganha. Adiante!

Ora, é evidente que o prazo de inelegibilidade de oito anos deve contar a partir da condenação em segunda instância, e não "após o cumprimento da pena" porque o marco que transforma alguém "em ficha suja", como se tornou corriqueiro dizer, é essa condenação, não? É ele que impede uma candidatura. E talvez só por isso Jair Bolsonaro esteja na Presidência, certo? Não conto a história que não houve. Fato é que, sem essa lei, Lula teria sido candidato.

Se esse é o marco da inelegibilidade, que sentido faz aplicar oito anos adicionais depois do cumprimento da pena? Sempre achei isso uma aberração.

De resto, define o Inciso III do Artigo 15 da Constituição:
"É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos".

Notem: a Constituição cassa os direitos políticos — e, pois, torna inelegível — quem é condenado, com trânsito em julgado, pelo tempo que durar os efeitos dessa condenação. Quem for condenado a 10 anos está inelegível, segundo a Carta, por 10 anos. Segundo a Lei da Ficha Limpa, por 18.

A rigor, essa lei resolveu meter uma espécie de cunha na Constituição, como a dizer: "Ah, não, depois desse período, ainda há mais oito..."

Convenham: se alguém é condenado a, digamos, quatro anos é porque se considera que essa pena é compatível com a gravidade do crime. Se o tempo da inelegibilidade começa a contar a partir da execução da pena, a Lei da Ficha Limpa já vai transformar, para efeitos de inelegibilidade, esses quatro em oito. Segundo o entendimento em curso, no entanto, quatro viram, na verdade, 12.

"Ah, Reinaldo, mas isso realmente limpa a política..." É mesmo? Agora tentem me convencer de que a Lei da Ficha Limpa fez realmente um Brasil do balacobaco. Nunca houve tantas pessoas honradas no poder, não é mesmo, senhores?

Não! Eu não estou culpando a Ficha Limpa pelo pântano que aí está e seus monstros da lama. Mas é evidente que ela agride, em muitos aspectos, fundamentos do bom direito e não serve de garantia de coisa nenhuma.

Minha posição não é nova sobre essa lei troncha, que é uma soma de aberrações.

Claro, claro! A gritaria já começou. Inclusive na imprensa.

De resto, se Bolsonaro vier a ser impichado por crime de responsabilidade — e caso seja declarado inelegível: aconteceu com Collor, mas não com Dilma —, assim ficará por 8 anos apenas. E olhem que estamos falando de crime de responsabilidade.

Nas vastas solidões do Brasil, inclusive as do direito, não é raro, infelizmente, que juízes e tribunais de Justiça se imbriquem com poderosos locais. O familismo, por exemplo, ainda é bastante presente nos nossos rincões. Essa inelegibilidade indeterminada, que não atende aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, é, em Banânia, também um negócio lucrativo.

Mas sempre há um bobo alegre pra gritar: "Ah, isso prejudica o combate à corrupção".

Acreditem: se esses que esgoelam em nome dessa causa se ocupassem de defender o Estado democrático e de direito, talvez não estivéssemos agora morrendo de susto, de bala e vírus.

Nunes Marques está apanhando, mas está certo. É provável que, levando a questão a plenário, seja derrotado. Inclusive porque está certo.

Eu? Falo o que penso e o que me instruem as leis da democracia. E chamo certo de "certo" e errado de "errado".

A Procuradoria Geral da República decidiu recorrer contra a decisão. Huuummm... Creio que isso faça parte, vamos dizer, da necessidade de manter um certo equilíbrio ecológico no Ministério Público Federal.

O lavajatismo é, acima de tudo, uma pilantragem intelectual e moral. Quando lhe interessa, tratam Augusto Aras, o procurador-geral, e Nunes Marques, o ministro, como meros estafetas de Bolsonaro. Nesse caso, ambos estão em posições opostas. E, ainda assim, estariam servindo ao presidente.

PS: Sustentar que o ministro não poderia ter concedido a liminar porque o STF já declarou a constitucionalidade da Lei Complementar 64 é uma bobagem robusta. Fosse assim, as ações de controle de constitucionalidade teriam seu escopo brutamente reduzido, e o tribunal jamais mudaria uma jurisprudência.

Ironia: a "Ficha Limpa" ser a Lei Complementar 64 tem lá a sua graça. Deveria ser 68...