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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Bolsonaro já piorou Queiroga. Pergunto: doutor, o senhor está rindo de quê?

Jair Bolsonaro e Marcelo Queiroga acertam os ponteiros. A foto, com todos os dentes, não condiz com a gravidade do momento, e a entrevista do futuro ministro é péssima. Tomara que mude de rumo, coisa de que duvido - Divulgação
Jair Bolsonaro e Marcelo Queiroga acertam os ponteiros. A foto, com todos os dentes, não condiz com a gravidade do momento, e a entrevista do futuro ministro é péssima. Tomara que mude de rumo, coisa de que duvido Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

16/03/2021 02h59

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No post anterior, escrevo que o presidente Jair Bolsonaro tem o dom de piorar as pessoas que o cercam e aqueles que a ele se subordinam. O caso mais eloquente é Paulo Guedes. Não que eu gostasse muito do seu pensamento — ou do que se podia depreender do que ele dizia. Não! Mas é fato que se tornou mais confuso, mais agressivo, mais contraditório. Também indago no artigo se Marcelo Queiroga, futuro e já quase ministro da Saúde, repetiria a escrita: Bolsonaro conseguiria piorá-lo, ou ele realizaria o prodígio de melhorar o chefe? Bem, caras e caros, já sei o que aconteceu. Na soma dividida por dois, o resultado é pior do que antes.

O direitista Queiroga, fã declarado de Jair Bolsonaro e de Enéas Carneiro, já morto, dois notáveis reacionários, tem lá suas questões ideológicas, coisa sempre complicada para quem lida com ciência. Mas vá lá. Médicos não são obrigados a ler Maquiavel, Montesquieu ou "O Pequeno Príncipe" — desde, claro!, que não falem sobre Maquiavel, Montesquieu ou "O Pequeno Príncipe".

Mas isso também vale para jornalistas ou açougueiros, ainda que pese sobre os ombros dessas duas categorias uma responsabilidade que me parece menor. Se o meu médico não acreditar em ciência, faço com ele o quê? Uma oração? Mas, para isso, já tenho a minha mãe, né? Ela até me "receita" coisas, é fato. Se chá de erva-doce, tomo. Se de camomila, caio fora... Até porque eu e os chás somos de planetas distintos. Vai um café expresso, curto, bem encorpado? Sigamos.

Queiroga, até anteontem era favorável ao distanciamento social e desancava o uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. O ainda presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, amigão de Flávio Bolsonaro, não resistiu à vaidade e à paixão pela política. Aceitou o convite do presidente para substituir Eduardo Pazuello, demitido da pasta de uma forma miserável. O general ficou sabendo antes pela imprensa que estava sendo chutado. Coitado! Informaram a ele também que estava doente, o que ele negou... Não foi por falta de aviso.

Adiante.

Queiroga concedeu ontem mesmo à CNN a sua primeira entrevista como ministro indicado. Fica evidente que Bolsonaro já o tornou pior. Como ele deve ter lido "O Pequeno Príncipe" ao menos — seria demais, convenha, esperar que fosse "O Príncipe" — deve saber que se torna, digamos, de algum modo responsável por tudo aquilo que cativa.

O LOCKDOWN
O doutor se disse contrário ao "lockdown como política de governo". Pergunto: quem, no Brasil, defende uma estupidez como essa? Lockdown não é "política de governo" nem onde está em aplicação neste momento, como é o caso da Itália e da França, em algumas áreas. O cardiologista certamente poderia me dar uma aula do que é "prolapso da válvula mitral", mas eu ensino um tantinho de política -- nunca de politicagem -- a ele. Lockdown, doutor, é apenas a última saída quando falharam todas as outras tentativas de conter a contaminação. E isso inclui as medidas a que seu novo chefe se opõe, como uso de máscara e distanciamento social.

Exceção feita a algumas cidades que chegaram ao caos, o Brasil e os Estados jamais decretaram lockdown. Por muito menos do que se vê aqui, países europeus fizeram essa escolha. Já escrevi e afirmei que também acho que esse deve ser o recurso extremo, até porque os pobres são os que mais padecem. Descartar a medida, como sua fala dá a entender — embora ele seja "sabonetoso" e prefira o terreno da ambiguidade —, é uma irresponsabilidade. Mas é o preço que a sua vaidade paga. Quer ser ministro.

A propósito, vão as suas aspas:
"Esse termo de lockdown decorre de situações extremas. São situações extremas em que se aplica. Não pode ser política de governo fazer lockdown. Tem outros aspectos da economia para serem olhados".

Defina "situação extrema", doutor, só para que saibamos do que o senhor está falando.

Cidadãos morrendo sufocados, aos milhares, definem uma "situação extrema"?

USO DA CLOROQUINA
Notório crítico do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina, na entrevista, o doutor fez uma afirmação à altura do chefe. O que disse seria incompreensível no mundo da denotação, mas temos de apelar à interpretação. Valeu por um "quem quiser receitar cloroquina, que o faça; quem quiser tomar, também". Ah, a vaidade...

Deve-se usar cloroquina ou não? Ele respondeu:
"É algo que precisa ser analisado para que a gente consiga chegar a um ponto comum que permita contextualizar essa questão no âmbito da evidência científica e da ciência".

Não entendi nada. Nem ele. A fala é tão confusa que fica parecendo que "evidência científica" e "ciência" são coisas distintas ou mesmo antagônicas.

E ainda:
"Isso [uso da cloroquina] é uma questão médica. O que é tratamento precoce? No caso da Covid-19, a gente não tem um tratamento específico. Existem determinadas medicações que são usadas, cuja evidência científica não está comprovada, mas, mesmo assim, médicos têm autonomia para prescrever".

Pronto! Desapareceu o crítico da cloroquina, e surgiu, em seu lugar, aquele que abre as portas para o discurso do presidente. Quase um quarto dos pacientes de Covid que morreram ficaram longe das UTIs, que, neste momento, estão colapsadas. E temos um ministro da Saúde a ser nomeado incapaz de dizer o que o médico dizia até anteontem.

Ah, claro! Ele defendeu diálogo com prefeitos e governadores. Só faltava dizer o contrário, né? Deixem que seu chefe se encarrega de hostilizar os representantes dos demais entes federativos que estão fazendo a coisa certa no mais das vezes: implementar formas variadas de restrição de circulação de pessoas, que Bolsonaro chama de "lockdown" ou de "estado de sítio".

VACINAÇÃO
O homem também disse que a melhor resposta é a vacinação. Ao menos isso... Essa conversão, já vimos, Bolsonaro também fez. Agora só faltam as vacinas.

O ministro disse ainda:
"[É preciso] assegurar que a atividade econômica continue porque a gente precisa gerar emprego e renda. Quanto mais eficientes forem as políticas sanitárias, mais rápido vai haver uma retomada da economia."

Eis o discurso que termina no buraco que resulta na espiral para cima das contaminações e mortes. Se "assegurar a atividade econômica" implica não impor medidas restritivas de circulação, estamos diante de uma agressão às "políticas sanitárias" que ele diz defender. E aí não vai haver "retomada da economia".

É como se dissesse: "Esqueçam o doutor Queiroga. Chegou o passador de pano". Tomara que faça um trabalho melhor do que sua entrevista sugere.

PARA ENCERRAR
Se Queiroga tivesse a exata noção da gravidade do momento, não teria tirado uma foto mostrando todos os dentes ao lado de Bolsonaro. Está rindo de quê?

Seja mais pudoroso.

Veja também comentário do Reinaldo Azevedo sobre o tema aqui.