Topo

Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

O enterro da última quimera do general em meio à doença e a 280 mil corpos

General Pazuello, que está deixando o Ministério da Saúde, onde nunca deveria ter entrado. Desastre da gestão se conta em milhares de corpos - Pedro Ladeira/Folhapress
General Pazuello, que está deixando o Ministério da Saúde, onde nunca deveria ter entrado. Desastre da gestão se conta em milhares de corpos Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

Colunista do UOL

16/03/2021 05h14

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O general Eduardo Pazuello deixa o Ministério da Saúde de maneira vexaminosa. E ninguém o submeteu a tanta humilhação como o chefe, Jair Bolsonaro, a quem serviu com fidelidade canina. Era o presidente o verdadeiro ministro da Saúde. Mas que se note: nada havia de ingênuo ou inocente em Pazuello. Poderia agora ler "Versos íntimos", de Augusto dos Anjos:

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de sua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija
!

Ao enterro metafórico da quimera do general, ninguém assistirá. O país vê, estarrecido, o enterro sem metáfora de 280 mil corpos.

A história de que Bolsonaro conserva a camaradagem da caserna é conversa mole. Escrevi aqui ontem um post sobre o "generalicídio" que ele já promoveu desde que é presidente. Pazuello é o oitavo general demitido — único da ativa. Quase sempre há ritual de humilhação.

Desconheço que exista um item no Código de Honra da farda segundo o qual esse comportamento tem de ser tolerado se partir de um colega. Mormente quando um capitão dá um pé no traseiro de um general. Acho que há muito de Freud nessas relações. O indisciplinado que foi cuspido do Exército faz gato e sapato daqueles que julgam tutelá-lo...

Pena do Pazuello? Não há o menor perigo. Foi colocado como secretário-executivo do Ministério da Saúde a 28 de abril de 2020, 12 dias depois da nomeação de Nelson Teich, para ser uma espécie de braço operante de Bolsonaro na pasta. Afinal, o presidente não confiava no novo titular. A 15 de maio, com meros 28 dias no cargo, o sucessor de Luiz Henrique Mandetta pede demissão, e o general assume a pasta como interino. E deixou claro que estava se preparando para ficar. E ficou.

Ora, ora.. Seu primeiro ato como ministro foi justamente publicar um protocolo para o uso da cloroquina, que não foi assinado por nenhum médico. O segundo se mostrou ainda mais deletério. Com meros nove dias no cargo, participou de um suposto protesto em favor do governo, cujo objetivo, na verdade, era atacar o Congresso e o Supremo. Era o general da ativa fazendo mesuras ao capitão da reserva que tinha sido um subversivo quando na Força.

E os atos indignos foram se somando em cascata. O general decidiu que a pasta não mais divulgaria o total de mortos. Foi obrigado, depois, a recuar. Pôs para circular uma espécie de protocolo para o tratamento precoce. Recentemente, a pasta extremou o feito lançando um aplicativo que recomendava os remédios inúteis de Bolsonaro a qualquer um que alegasse ter sintomas que poderiam ser de Covid-19. Teve de retirar do ar.

Mobilizou um grupo de médicos para pressionar o serviço de atendimento de Saúde do Amazonas a adotar o que chamo de "Kit Homicídio". Sobram indícios de que sabia da crise de oxigênio no Estado e de que demorou para agir. Em companhia do chefe, era uma espécie de militante contra o distanciamento social. Chegou a assinar o protocolo de compra de doses da Coronavac e depois roeu a corda. Entrou tarde na disputa mundial pelas vacinas e recusou a oferta da Pfizer, que propôs vender ao país 70 milhões de doses até o fim deste ano. Um lote de três milhões poderia ter sido entregue ainda em 2020.

Da presença em um ato golpista ao desastre na gestão da Saúde, o general passou por todos os estágios da incompetência.

Ocorre que ele nunca foi ministro da Saúde. Era um mero executor das sandices de Bolsonaro e chamava a sua atuação de "missão". A julgar por sua entrevista-pronunciamento desta segunda, ficaria no cargo até o fim dos dias. Segundo seus critérios, foi competente. Afinal, ele mesmo definiu a relação: "Um manda, o outro obedece".

Deixa o Ministério da Saúde investigado num inquérito, que tramita no Supremo. Sem foro especial, o caso deve migrar para a primeira instância. A depender do acirramento da crise, será muito difícil a Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, impedir a instalação de uma CPI da Covid-19.

Pazuello é defenestrado em meio à segunda onda da pandemia, a que ele e o presidente deram de ombros, causando uma devastação no sistema de Saúde e matando como nunca.

No pronunciamento de ontem, uma de suas primeiras frases foi esta: "Hoje, o Brasil pode se orgulhar".

Será que lá pelas bandas das Forças Armadas se aprendeu alguma lição?