Topo

Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Bolsonaro janta com empresários. Sirva-se a realidade como prato principal!

Presidente Jair Bolsonaro: no dia dos mais de quatro mil mortos, ironia grosseira e evidência de que ele ainda não entendeu a gravidade da crise - Adriano Machado/Reuters
Presidente Jair Bolsonaro: no dia dos mais de quatro mil mortos, ironia grosseira e evidência de que ele ainda não entendeu a gravidade da crise Imagem: Adriano Machado/Reuters

Colunista do UOL

07/04/2021 07h01

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O presidente Jair Bolsonaro janta na noite desta quarta com um grupo de empresários em São Paulo, na casa de Washington Cinel, dono da empresa de segurança Gocil. Que bom! Que ele tenha a chance de aprender alguma coisa. E que ninguém saia de lá esquecendo o que já sabe. Sou favorável a que presidentes da República, fora dos tempos de pandemia, jantem com setores importantes do país dia sim, dia também. Depois dos empresários, deveria haver um encontro com representantes de sindicatos de trabalhadores, com ONGs, com estudantes... Um mandatário que rompe o diálogo com a sociedade vira refém de sua bolha de fanáticos ou de si mesmo, a exemplo do que se viu na noite desta terça, às portas do Palácio da Alvorada. Ainda voltarei ao ponto.

Em sua coluna no Globo, Lauro Jardim afirma que, entre os convidados, contam-se André Esteves (BTG), Candido Pinheiro (Hapvida), Luiz Carlos Trabuco (Bradesco), Carlos Sanchez (EMS), Alberto Saraiva (Habib's), Flavio Rocha (Guararapes), João Camargo (grupo Alpha de comunicação), João Carlos Saad (Band), Alberto Leite (F5 Securities), Claudio Lottenberg (Hospital Albert Einstein), Ricardo Faria (Granja Faria), Antônio Augusto Amaral de Carvalho Filho (Jovem Pan) e José Roberto Maciel (SBT).

Segundo reportagem do Estadão, estão na pauta o aval dado pelo Planalto para a compra de vacinas por empresas privadas, a reafirmação do compromisso com o teto de gastos e o encaminhamento das reformas administrativa e tributária. Espero que não só isso. Ou não principalmente isso. Certamente saberemos. Tais temas, convenham, requerem negociação com o Congresso. Um jantar com esse cardápio parece quase um apelo na linha: "Ajudem-me a governar". Seria legítimo fazê-lo em tempos difíceis como os que vivemos. Mas é preciso, então, que o governante não faça questão de interditar os canais do entendimento.

Nesta terça, os novos ministros assumiram suas respectivas pastas. Há ao menos dois discursos, indiscutivelmente afinados com o do presidente, que requerem esclarecimentos, a menos que se insista em apostar na confusão. Trato do assunto em outro post, mais tarde. Volto ao início: às palavras saídas da boca do próprio presidente.

O país teve nesta terça-feira um novo recorde de mortes em 24 horas, segundo a contabilidade do consórcio dos veículos de comunicação: 4.211 óbitos. O número oficial é igualmente apavorante e inédito: 4.195. Infelizmente, os dados referendam as piores projeções a respeito. E, por óbvio, faz-se necessário que, em matéria dessa natureza, não se seja nem pessimista nem otimista. Só o realismo pode ajudar.

Ocorre que Bolsonaro faz uma leitura unicamente política da crise e se fixou num falso dilema: ou se tomam algumas medidas para conter a doença, e a economia e o seu governo naufragam, ou, então, ele sai arrumando os culpados, pregando uma impossível volta à normalidade. Prestem atenção! O país vive a normalidade possível. A adesão a medidas restritivas está na faixa dos 40%, muito abaixo do que especialistas apontam como eficaz para conter a catástrofe. O presidente da República reage, no entanto, como se o país estivesse vivendo um lockdown permanente. Não está. O colapso do sistema de saúde e o número diário de contaminados e mortos o evidenciam.

NEGACIONISMO OBSCURANTISTA
Pois bem. Justamente na terça dos mais de quatro mil mortos, o presidente houve por bem ter uma daquelas conversas à beira do precipício com os desocupados que ficam às portas do Palácio da Alvorada. E se assistiu ao espetáculo grotesco de sempre. E não há reunião nenhuma que possa dar jeito num governante que decide fazer ironias grosseiras e acusações infundadas quando o país vive o pior da crise.

Criticando, mais uma vez, as tímidas medidas de restrição de circulação em curso no país, achou que um gracejo grosseiro combinava com o momento. Afirmou:
"Quando você prende o cara em casa, o que ele faz em casa? Duvido que ele não aumentou um pouquinho de peso. Duvido! Até eu cresci um pouquinho a barriga".
E emendou:
"Tudo vai ser agravado".

Há aí uma tese, já desmentida pelos fatos no Brasil e no mundo, segundo a qual as dificuldades econômicas que traz a pandemia derivam das medidas para tentar conter a contaminação. Errado. A rigor, só um país foi realmente eficaz no combate a pandemia: a China. Seu sistema social e político, associado ao uso de tecnologia de ponta no monitoramento de contaminados, facilitaram o controle da doença. Fez-se mais do que lockdown: houve mesmo o bloqueio militar de determinadas áreas.

Tais medidas não são viáveis em regimes democráticos — e democracias também têm seu custo. Estas precisam contar com o engajamento dos cidadãos e com governos sensíveis o bastante para apertar ou afrouxar as medidas de restrição de circulação de acordo com a evolução da doença. Bolsonaro, no entanto, ignora o saber firmado a respeito e insiste numa impossível volta à normalidade. Todos sabemos como o vírus se espalha. Todos conhecemos os meios de contágio. Com as restrições, temos os números que temos. Como seria sem elas? Um governo que não consegue garantir o suprimento de oxigênio, de anestésicos e de neurobloqueadores cobra uma vida normal?

PARALELO INSANO
Uma das pessoas presentes lembrou que o país havia superado a marca de quatro mil mortos. Ele então se saiu com esta:
"Você pode ver: até um ano e pouco atrás, um policial batia num bandido. Toda a esquerda ia contra. Agora, está o cidadão de bem..."

E a frase ficou pelo meio. Sim, certamente tentou dizer que há policiais batendo em cidadão de bem que descumpre medidas restritivas. Aqui e ali aconteceram algumas abordagens mais duras, mas é evidente que o presidente magnifica os conflitos. Infelizmente, na prática, ele os estimula, tentando justificar a todo custo a sua tese. De resto, policiais não têm de bater nem em bandidos nem em "cidadão de bem". Sua função não é bater, mas combater o crime.

ATAQUE À IMPRENSA
E, claro!, Bolsonaro não seria quem é se não desferisse um ataque boçal e mentiroso à imprensa. Afirmou:
"Eu resolvo o problema do vírus em poucos minutos. É só pagar o que os governos pagavam no passado para Globo, para Folha, Estado de S. Paulo. Agora, este dinheiro não é para a imprensa, é para outras coisas".

O presidente certamente sabe que está falando uma mentira. Seus apoiadores contumazes, não importa o que diga ou faça, são conhecidos, notórios e têm preço. Se aqueles que apenas reportam os fatos ou, então, que lhe são críticos também estivessem à venda, seu governo os compraria sem pestanejar. Até porque, nesse particular, Bolsonaro precisa decidir: ou imprensa que não lhe é subserviente está contaminada por esquerdistas e comunistas ou está à espera de uma oferta. Não é possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo. A verdade? Nem uma coisa nem outra.

Que o presidente converse, sim, com o maior número de pessoas. A questão é saber se ele está disposto a ouvi-las — muito especialmente aquelas que não concordam com ele e não se encontram à venda. Até porque quem estava no mercado à espera de uma oferta já foi arrematado. E, como se nota, isso não resolve o problema. Essa gente produz insultos a seus adversários, "fake news" e "fake opinions" que circulam freneticamente apenas na própria bolha de fanáticos.

E Bolsonaro teria de fugir da bolha.