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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

PGR ignora ciência e risco à criança em pareceres ao STF e espanca a língua

Lindora Araújo e Augusto Aras, a dupla que comanda a PGR. Até a língua portuguesa, por ali, chegou ao fundo do poço, como se vê no trecho reproduzido, que diz o contrário do que pretende. Ato falho? - Pedro Ladeira/Folhapress; Reprodução
Lindora Araújo e Augusto Aras, a dupla que comanda a PGR. Até a língua portuguesa, por ali, chegou ao fundo do poço, como se vê no trecho reproduzido, que diz o contrário do que pretende. Ato falho? Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress; Reprodução

Colunista do UOL

17/08/2021 23h18

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A Procuradoria Geral da República passou a ser uma espécie de Agente Provocador da República no sentido político que a palavra "provocador" possa ter como adjetivo ou como substantivo, que aparece na acepção 4 do Dicionário Houaiss: "que ou aquele que procura perturbar reuniões ou manifestações, esp. de cunho político, com perguntas absurdas, ofensivas, ou comete atos de agressão, sabotagem ou vandalismo, buscando causar o caos social". Se a definição não serve na sua literalidade, encaixa-se, vamos dizer, no espírito da coisa.

Vamos de cara com o fato da hora. A subprocuradora-geral da República, Lindora Araújo, amiga conhecida da família Bolsonaro — ser amigo, claro, não é crime — enviou ao Supremo a opinião da PGR sobre dois pedidos de investigação contra o presidente Jair Bolsonaro. Ela o faz atuando em nome de Augusto Aras, o procurador-geral da República. O que vocês lerão agora é assombroso.

Antes que comecem a espalhar bobagens por aí, relembro mais uma vez: os ministros relatores do Supremo, que recebem as notícias-crime, seguem a opinião da PGR SOBRE A ABERTURA DE INQUÉRITO SE QUISEREM. Não têm a obrigação de fazê-lo. O MP é titular da ação penal, não do inquérito. Adiante.

AS AFIRMAÇÕES ABSURDAS E ANTICIENTÍFICAS DE LINDORA
Observem que o negacionismo científico, hoje, não é, com efeito, uma exclusividade do presidente da República e de alguns de seus auxiliares na cúpula do Estado. Gleisi Hoffmann pediu que o presidente fosse investigado no caso das motociatas por desobediência a normas sanitárias e, claro!, por emprego irregular de verba pública, uma vez que ele mobiliza a estrutura do Estado -- e dos Estados a que vai -- para proselitismo político e interesses pessoais.

Pois bem...

A questão foi enviada à PGR. E qual foi a resposta de Lindora -- que fala por Aras? Acreditem: segundo a dupla, não existe comprovação científica de que a máscara possa impedir a propagação do vírus. Leiam:
"Embora seja recomendável e prudente que se exija da população o uso de máscara de proteção facial, não há como considerar criminosa a conduta de quem descumpre o preceito. Essa conduta não se reveste da gravidade própria de um crime por não ser possível afirmar que, por si só, deixe realmente de impedir introdução ou propagação da COVID-19. Não é possível realizar testes rigorosos, que comprovem a medida exata da eficácia da máscara de proteção como meio de prevenir a propagação do novo coronavírus".

A coisa é tão escandalosa que a doutora ERRA ATÉ NAQUILO QUE PRETENDE ESCREVER. Em vez de afirmar, dentro do absurdo científico que pratica, "POSSA realmente impedir a introdução ou propagação da Covid-19", ela escreve "DEIXE de impedir". Entenderam: Doutora Lindora diz "não ser possível afirmar que a conduta [uso de máscara] deixe de impedir a introdução ou propagação..."

É espantoso!

É humilhante para a PGR!

É um desastre moral é ético para o Estado brasileiro.

Sim, ela quis dizer não haver provas de que a máscara possa impedir a contaminação. E se traiu: lascou um "deixe de impedir". Ademais, existe uma lei votada pelo próprio Congresso Nacional, sancionada pelo presidente, que impõe o uso de máscaras em locais públicos.

O "deixe de impedir" de Lindora evidencia o que me parece o estágio de confusão intelectual e moral em que se perde a PGR hoje em dia. Mas há quem prefira atacar Alexandre de Moraes por cumprir a lei. É claro que, se o STF decide abrir inquérito, mesmo contra a opinião da PGR, esta jamais pedirá a abertura de uma ação penal, não importa o que traga a investigação.

A relatora é a ministra Rosa Weber.

O CASO DAS CRIANÇAS
Vocês se lembram de que, no Rio Grande do Norte, Bolsonaro tirou a máscara do rosto de uma criança e estimulou outra a fazê-lo ela própria, o que acabou acontecendo. Também ali promovia aglomeração com dinheiro público. O PSOL foi ao Supremo com pedido de abertura de investigação. Nesse caso, o partido acusa infração de medida sanitária preventiva e submissão de menor a vexame, conforme Estatuto da Criança e do Adolescente. O relator é o ministro Ricardo Lewandowski.

Não para Lindora e Aras. Não! Nada de errado com tais condutas.

O que disse doutora Lindora? Vamos lá:
"Inexistem elementos mínimos que indiquem ter a autoridade noticiada atuado com vontade livre e consciente de criar uma situação capaz de expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente".

Assim, se, numa situação de pandemia, Bolsonaro, deliberadamente, tira a máscara de uma criança e incita a outra a fazê-lo, não está expondo as crianças a risco. Essa é a opinião de Lindora e Aras. Os especialistas em saúde discordam. Mas quem eles pensam que são?

Ah, sim. Segundo a doutora, a interação do presidente com as crianças foi descontraída. E, como sabemos, o melhor antídoto contra o vírus é mesmo a descontração, certo? Escreve:
"Inexiste elemento indiciário em torno de eventual vontade livre e consciente do Presidente da República de constranger aquelas duas crianças ou uma delas. Os infantes também não demonstraram, com atitudes ou gestos, terem ficado constrangidos, humilhados ou envergonhados na presença do Presidente da República, que, ao interagir com eles, fê-lo de forma descontraída".

Mais um pouco, e Lindora falaria da "vontade livre e consciente" de uma criança de dois anos.

Em qualquer caso, aquela que é o braço-direito de Aras na PGR não vê uso indevido de recursos públicos. Convenham: se o presidente quer usar a grana dos brasileiros para andar de moto e causar aglomerações, que mal pode haver?

A isso estamos submetidos. A isso está submetido o país.

STF DECIDE
Assim como o Artigo 282 do Código de Processo Penal garante a Moraes impor as medidas cautelares que julgar necessárias no caso Roberto Jefferson -- concorde a PGR ou não --, os ministros do tribunal, em casos assim, podem ou não abrir a investigação, que é o inquérito.

Se abertos, serão enviados à PGR. Aí, sim, Aras e Lindora serão livres para propor a abertura de Ação Penal. Sim, já sabemos que não vão propor nada.

Se a ciência não serve de parâmetro para a dupla ao definir se há exposição de pessoas a risco de contágio, outra coisa há de servir.

O quê? As afinidades eletivas, as amizades, as identidades ideológicas? Não sei.

PARA ENCERRAR
Augusto Aras enviou um mimimi ao Supremo afirmando que não existe prazo definido para que a PGR se manifeste sobre questões penais -- o que inclui pedido de abertura de inquérito.

Pois é. Não haver prazo não implica que se possa esperar indefinidamente. A obrigação do ministro do Supremo é encaminhar a notícia-crime para a PGR. Como não precisa concordar com o parecer do órgão, se a resposta não chega num prazo razoável, nada impede que decida. E o mesmo vale para medidas cautelares, como sabe Alexandre de Moraes.

E realmente encerro assim, voltando a Lindora: as duas manifestações da subprocuradora são de tal sorte absurdas e abjetas que a gente chega a se perguntar se não foram talhadas numa atitude de desafio a Supremo: "Vamos ver se os ministros terão a coragem de nos desafiar mais uma vez".

Não sei se é assim.

Mas assim parece.

Entendo que quem desafia a ciência e a lei, nesse caso, queira ou não, é a dupla Lindora-Aras.

Que os ministros do Supremo façam valer a sua autonomia.

PS: A "negação dupla" na confusão mental de Lindora me lembra leitores bolsonaristas que resolvem me ofender assim de vez em quando: "Você tem de aprender a ser menos imparcial, Reinaldo Azevedo". Ou ainda: "A sua imparcialidade é absurda! Petralha!"

Não sabem a diferença entre "parcial" e "imparcial". Nem entre "bem e mal". Nem entre "deixe de impedir" e "possa impedir".

É o fundo do poço.