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Ronilso Pacheco

Fundamentalismo religioso e movimento antivacina: uma mistura mortal

Pastor Valdemiro Santiago chegou a cobrar R$ 1.000 por semente que "cura" o coronavírus                              - Reprodução
Pastor Valdemiro Santiago chegou a cobrar R$ 1.000 por semente que "cura" o coronavírus Imagem: Reprodução

15/01/2021 04h02

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O movimento antivacina no Brasil não tem uma organização tão bem estruturada como já possui hoje nos Estados Unidos. Mas ele se apresenta como um movimento crescente, e se espalha, sobretudo através de muitas igrejas, grandes e pequenas, em que diversas lideranças, pastores e pastoras, fomentam a resistência ao imunizante.

A articulação antivacina no Brasil tem responsabilidade direta dos mesmos pastores que se juntaram ao redor de Bolsonaro, para diminuir a gravidade da pandemia, quando ela ainda estava chegando no Brasil.

Vale lembrar a "Convocação Nacional por Jejum e Oração pelo Brasil", feita por Bolsonaro e "seus pastores", em abril, quando o Brasil tinha quase 90 mil casos e pouco mais de 6 mil mortes pela doença.

Quando o Brasil chegou a 100 mil mortes em agosto, nem o presidente, nem os seus pastores ou seus cantores gospel deram uma única palavra sobre o assunto, uma oração, uma nota de pesar, nada.

Este mesmo grupo de pastores segue em silêncio sobre a importância das vacinas. Se não endossam diretamente um movimento contra a imunização, eles estimulam a desconfiança de seus membros, ao invés de usarem sua influência para motivá-los.

O pastor Valdemiro Santiago, fundador da Igreja Mundial do Poder de Deus, segue divulgando o seu "feijão milagroso", que, segundo ele, dependendo da fé da pessoa, seria capaz de curar até a covid-19.

Feijão milagroso contra o comunismo

O pastor Davi Góes, do Ceará, afirmou, em dezembro, em um sermão, que a vacina CoronaVac traz o vírus do HIV dentro dela. Silas Malafaia, em seu Twitter, desdenhava da eficácia da vacina chinesa, a quem o pastor chamou de "crápulas comunistas".

Essa mistura de teoria da conspiração contra a China e o comunismo, com o fundamentalismo religioso cristão é o tom do próprio governo Bolsonaro. O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, desde o início da pandemia acusa a China de espalhar propositalmente o vírus, e, por diversas vezes, usou a expressão "comunavírus".

Os pastores estão transformando uma ideologia política fundamentalista, que defende o capitalismo contra o comunismo, em uma visão fundamentalista religiosa que está convencida (e tenta convencer) que o comunismo é historicamente inimigo do cristianismo e das igrejas.

Como seguem basicamente tudo que vem a partir do fundamentalismo evangélico americano, o movimento brasileiro tende a fazer uma campanha aberta contra a CoronaVac e sua eficácia, desencorajar milhares de brasileiros a recorrerem à vacina, tendo como justificativa as mesmas ideias conspiratórias religiosas que têm sido desenvolvidas nos Estados Unidos.

Pastor está próximo ao fiel da periferia, enquanto governo sempre esteve longe

Isto pode ter, e terá, um efeito devastador em muitas igrejas espalhadas pelo país. Aceite-se ou não, a credibilidade do pastor, sua proximidade e o apreço afetivo que tem da sua membresia, o tornam mais "confiável" do que os apelos de médicos, cientistas, especialistas. O apelo à confiança na fé e no poder de Deus desafia qualquer explicação razoável para a vacina.

Mas também há questões. Uma parte significativa do povo está acostumada ao descuido e o distanciamento dos serviços públicos.
Em muitas periferias sobretudo, grande parte do que alguém conseguiu na comunidade foi tendo a igreja como articuladora importante (a casa construída, o emprego, os remédios, a comida, a internação, o cuidado dos filhos, etc.).

Não é fácil realmente considerar que, numa sociedade onde os mais pobres e desassistidos se "acostumaram" com a morte, e nunca tiveram cuidado e atenção, o empenho, de uma hora para a outra, por uma vacina que "salvará a vida de todos" seja tão mais "crível" do que a afirmação do seu pastor ou pastora, de que tudo não passa de um "plano" com algum fim diferente do que Deus deseja.

O Brasil tem um agravante na resistência às vacinas, que é a própria hostilidade pública do presidente. Em dezembro, Bolsonaro disse categoricamente que não irá se vacinar, e se sua vida corria risco, isso era um problema dele. Nesta semana, mesmo após o Ministério da Saúde anunciar a compra da CoronaVac, o presidente fez piada sobre a eficácia média da vacina, de 50,3%.

A luta pela vacinação só está começando. As conspirações já começam a surgir. Vai ser necessário um empenho coletivo e sério, para não negligenciar dos possíveis efeitos desinformadores do fundamentalismo religioso aliado do governo Bolsonaro.