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Rubens Valente

Na pandemia, Ministério da Agricultura recebe doação de setor que fiscaliza

Criação de frangos no Paraná - Rodolfo Buhrer
Criação de frangos no Paraná Imagem: Rodolfo Buhrer

Colunista do UOL

31/05/2020 04h00

Responsável pela fiscalização da produção animal no país, o Ministério da Agricultura aceitou receber uma doação de 4 mil doses de vacina contra gripe para os servidores do órgão, incluindo os auditores fiscais agropecuários, da principal entidade que representa a avicultura e a suinocultura no país.

As doses custaram cerca de R$ 700 mil e foram doadas pela ABPA (Associação Brasileira de Proteína Animal), que reúne cerca de 136 associações empresariais, cooperativas e empresas de criação e abate de frangos e porcos.

As doses começaram a ser aplicadas no último dia 25 nos servidores do ministério e da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento). A ABPA providenciou a vacina tetravalente, que protege contra a Influenza A (H1N1 e H3N2) e duas cepas da Influenza B.

Entre as funções do Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) está a inspeção de mais de 5 mil estabelecimentos no país, realizada por meio do Dipoa (Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal), órgão subordinado à SDA (Secretaria de Defesa Agropecuária). O órgão emite o selo SIF (Serviço de Inspeção Federal), um atestado de que a empresa cumpre as normas regulamentadas e critérios usados pelo governo para dar uma garantia da qualidade e de segurança aos produtos de origem animal para os mercados interno e externo.

Em seu site na internet, a ABPA informa que sua missão é "representar o setor avícola e suinícola brasileiro em foros nacionais e internacionais zelando pela qualidade, sanidade e sustentabilidade dos produtos, promovendo a integração de toda a cadeia com elevado padrão tecnológico, possibilitando rentabilização e consolidação dos mercados interno e externo, bem como divulgar o frango e o suíno brasileiro nesses mercados".

O advogado Mauro de Azevedo Menezes, ex-presidente da CEP (Comissão de Ética Pública) do Palácio do Planalto (2012-2016), que comentou o caso em tese, a pedido da coluna, a doação das vacinas que beneficiam o órgão que deve fiscalizar o próprio doador é "um conflito de interesses oblíquo, indesejável, porque de certa forma afeta a imparcialidade dos fiscais".

"Isso não é desejado, não é republicano, promove uma confusão entre público e privado e termina promovendo um esvaziamento da capacidade de fiscalização do Estado de dizer que o produto é íntegro, que está em conformidade com as normas sanitárias e legais", disse o advogado.

"As pessoas podem dizer: 'Ah, mas a doação é nobre, meritória, não pode ser ruim'. Aí que existe o truque, a lacuna. Ela é nobre quando não há interesse envolvido. Nesse caso é um benefício que vai para o Estado mas também vai para o auditor. Ele sabe que a qualidade daquela vacina que ele está tomando, quem a custeia, é justamente o ente que ele tem a obrigação de fiscalizar e, se for o caso, até de punir. Esse interesse é que desmonta essa ficção. O Estado se aliviar dessa despesa dessa forma está errado. O Estado tem a obrigação de custear a vacina desses servidores sem que dependam da doação do objeto da auditoria", disse o advogado.

Em nota à coluna, o Ministério da Agricultura reconheceu que poderia ter bancado o custo das vacinas, mas argumentou que, "em virtude das características de evolução da pandemia, optamos pelo caminho mais ágil para realizarmos a estratégia de imunização do nosso quadro de profissionais". A vacina doada, contudo, como o próprio ministério reconhece, não é voltada para o novo coronavírus, e sim para tipos de gripes já comuns e que anualmente aparecem no país.

O Mapa disse ainda que a "alternativa convencional seria a realização de licitação, o que poderia afetar a continuidade dos trabalhos essenciais em virtude do tempo para a realização da compra".

Sem conflito

Em nota à coluna, a ABPA considerou que não há qualquer entrave ou dilema ético na doação. "Do ponto de vista ético ou de 'compliance', não há qualquer conflito. A doação ocorreu de forma transparente e formal. Assim como os fiscais, os trabalhadores nas plantas estão sendo vacinados. O objetivo se resume à manutenção da produção de alimentos no país. Os auditores fiscais são independentes e seguem em seu papel fiscalizatório", disse a entidade.

A ABPA também afirmou que a doação "foi uma iniciativa da associação, dentro dos esforços para manter o abastecimento de alimentos, durante o enfrentamento à Covid-19".

Em mensagem à coluna, o Ministério da Agricultura disse que as vacinas são destinadas aos servidores que atuam "em atividades presenciais e essenciais à manutenção do abastecimento de alimentos nas diferentes regiões do país".

"A Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA) ofereceu uma doação ao governo federal, por meio do Mapa, para a execução de ações de combate aos efeitos do Covid-19. O Mapa identificou que as ações de imunização seriam as mais relevantes para esse momento, considerando que a campanha em curso pelo Ministério da Saúde visa públicos vulneráveis e não aqueles que o Mapa considera como essenciais no cumprimento de sua missão de manutenção do abastecimento de alimentos", informou o ministério.

Indagado sobre eventual conflito de interesses, o Mapa respondeu: "A doação seguiu os preceitos legais previstos na estrutura administrativa do governo federal. A imunização de servidores, empregados públicos e demais colaboradores está em linha com as estratégicas para combater a pandemia e seguem os princípios da transparência coordenados por órgãos de controle e a avaliação jurídica do Mapa. Em uma segunda etapa, a partir do mês de junho, está prevista imunização de funcionários das centrais de abastecimento (Ceasas) e demais setores agropecuários. A etapa está sendo articulada com o Ministério da Saúde. Neste universo, está prevista a aplicação em trabalhadores de frigoríficos em situação mais crítica".

"Reforçamos que a realização dessa campanha visa imunizar profissionais que atuam nas atividades relacionadas ao abastecimento de alimentos no país e, com isso, reduzir os riscos de internações e interrupção dessas atividades durante a pandemia."