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Rubens Valente

Governo Bolsonaro revoga reconhecimento de camponês vítima da ditadura

Albertino José de Farias (1914-1964), líder camponês de Vitória de Santo Antão (PE), desaparecido após o golpe militar de 1964 - Álbum de Família
Albertino José de Farias (1914-1964), líder camponês de Vitória de Santo Antão (PE), desaparecido após o golpe militar de 1964 Imagem: Álbum de Família

Colunista do UOL

08/09/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Comissão de mortos e desaparecidos volta atrás de decisão tomada em dezembro de 2018 e impede indenização de R$ 130 mil a família de líder camponês
  • Morto aos 50 anos de idade em abril de 1964, Albertino José de Farias era um dos líderes das Ligas Camponesas em Vitória de Santo Antão (PE)
  • Presidente da comissão, vinculada ao ministério de Damares Alves, alegou que pedido já havia sido indeferido outras vezes e citou suposta ilegalidade

A comissão de mortos e desaparecidos políticos da ditadura militar, vinculada ao ministério de Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), revogou uma decisão anterior tomada pelo mesmo órgão no final do governo Temer (2016-2018) e mandou arquivar o processo pelo qual União reconheceu, como vítima da ditadura, o líder camponês Albertino José de Farias (1914-1964).

A viúva de Albertino, a trabalhadora rural Severina de Paz Farias, moradora de Vitória de Santo Antão (PE), faleceu em abril passado, aos 102 anos de idade, sem receber a indenização, prevista em lei, de R$ 130 mil e sem ter conseguido incluir, na certidão de óbito do marido, a informação de que ele foi assassinado pela ditadura. O corpo também nunca foi encontrado.

"É uma decepção. A gente estava confiante. Foi aprovado no final do governo Temer. Mas agora o governo, com a ministra Damares, conseguiu reverter o processo e misturou com os outros. Esse reconhecimento é uma ajuda financeira. Passamos por muitas dificuldades", disse à coluna Semeão, 57, um dos sete filhos de Albertino.

Em dezembro de 2018, após uma longa luta de mais de 16 anos da família de Albertino e de seu advogado, Waldomiro Antonio de Campos Batista, o "Miro", do Grupo Tortura Nunca Mais de Goiás, a CEDMP (Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos) publicou, a partir de um voto da então presidente, a procuradora da República Eugênia Augusta Gonzaga, em Diário Oficial a decisão que reconheceu Albertino como vítima da ditadura.

Na publicação, Eugênia informou que a decisão fora tomada em sessão ordinária da CEMDP iniciada em 26 de outubro e encerrada em 18 de dezembro de 2018. A comissão concedeu à família os direitos de "pagamento de indenizações, a retificação de assentos de óbito e a busca de corpos não entregues às famílias para sepultamento digno", medidas previstas na lei 9.140, de 1995.

O governo Bolsonaro, contudo, não cumpriu a decisão da comissão. Em junho último, a comissão voltou atrás e revogou a decisão de 2018, por quatro votos a dois, citando um parecer da consultoria jurídica do ministério. O processo na CEMDP foi relatado pelo novo presidente da comissão, Marco Vinicius Pereira de Carvalho, advogado, filiado ao PSL e assessor de Damares.

Carvalho foi nomeado na CEMDP em agosto de 2019 depois que Eugênia cobrou do presidente Jair Bolsonaro provas sobre a afirmação de que ele tinha informações sobre o paradeiro do pai do presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz, sequestrado e morto na ditadura - depois que foi cobrado pelo STF, Bolsonaro disse que nada sabia a respeito.

"Essa decisão de agora é lamentável. Essa família foi muito prejudicada por uma série de erros, de desorganização dessa parte documental. Quando finalmente conseguimos fazer andar e resolver a questão, votando no final de 2018, houve essa troca de governo e não conseguimos fazer pagar. Agora o governo rejeitou, voltou atrás. E agora estão nesse movimento de revisar votos, revisar coisas", disse à coluna, nesta segunda-feira (7), a ex-presidente da CEMDP Eugênia Gonzaga.

A revogação é o mais recente capítulo da longa disputa da família de Albertino com o governo federal iniciada em novembro de 2002. Por duas vezes, durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), o pedido da família também não foi reconhecido por uma conselheira da comissão. O reconhecimento só ocorreria em 2018, 16 anos depois do primeiro pedido formulado por um dos filhos de Albertino, Moisés. Ele também já faleceu, há cerca de seis anos, segundo seu irmão Semeão.

A história de Albertino, morto após a insurreição de uma cidade

Albertino, nascido em 6 de janeiro de 1914 em Escada (PE), é considerado um dos primeiros desaparecidos da ditadura militar. Na época da morte, ele era um dos líderes da fração das Ligas Camponesas que organizava os trabalhadores rurais dos engenhos em Vitória de Santo Antão desde 1955 e que foi alvo de intensa perseguição do governo militar, incluindo forças do Exército que se espalharam pela região a partir de abril de 1964. Parte da história do movimento no Engenho Galileia, próxima de Santo Antão, é contada no premiado documentário "Cabra marcado para morrer" (1984), de Eduardo Coutinho (1933-2014).

De acordo com cinco depoimentos anexados ao processo pela família, Albertino, trabalhador do engenho Serra, onde recebia três salários mínimos, foi líder por mais de oito anos das Ligas em Vitória de Santo Antão, a cerca de 46 km de Recife (PE). Essa fração chegou a ter mais de 5 mil filiados.

Em depoimento à Justiça em 2005, sua esposa Severina contou que Albertino não andava armado, "sequer com facão ou punhal", e por diversas vezes foi à cidade de Santo Antão "para fazer manifestações". "Seu esposo saía pelos engenhos ajuntando os trabalhadores 'para ver se melhorava a vida dos trabalhadores'", disse Severina. Prevendo retaliações, ela "dava conselhos" para Albertino "deixar de fazer manifestações", mas ele permaneceu na organização.

Ao saberem do golpe contra o presidente João Goulart (1919-1976), os trabalhadores se armaram com espingardas, facões e foices e tomaram vários pontos de Vitória de Santo Antão.

"No dia 31 de março de 1964, [Albertino] orientou e esteve na frente da ocupação da nossa cidade, por milhares de trabalhadores rurais. Como o ex- [então] governador Miguel Arraes não enviou os mantimentos e armas para a resistência do golpe militar, os trabalhadores tiveram que se dispersar antes da chegada das tropas militares", afirmou, em declaração escrita, um dos genros de Albertino, Sebastião Pereira da Silva.

De acordo com o depoimento de 2002 de Moisés, filho de Albertino, os camponeses tomaram a prefeitura, o quartel da polícia, a estação de rádio, a central telefônica, a central telegráfica, a estação ferroviária, postos de gasolina e celeiros da Cagep (Companhia de Armazéns Gerais de Pernambuco). Em 3 de abril, a ocupação acabou pouco antes de o Exército chegar à cidade. Moisés citou como fonte o livro "História e natureza das Ligas Camponesas" (ed. Expressão Popular, 2002), de Clodomir Morais, Bernardete Aued e Joseph Page, que fala da insurreição popular na região.

O corpo de Albertino é achado

Com tropas do Exército ocupando Santo Antão, os líderes das Ligas se espalharam, buscando proteção. "Meu sogro, logo após a intervenção militar, escondeu-se nas matas da região, pois a polícia já o tinha procurado para prendê-lo e, não o encontrando, vigiavam o local. [...] Dois dias depois ele próprio desapareceu, vizinhos o viram sendo empurrado, espancado e enfiado dentro de um jipe do Exército", relatou Sebastião em declaração por escrito.

De acordo com o depoimento de Manoel Antonio de Lira, trabalhador de engenho da região, no terceiro dia de ocupação "as tropas das Forças Armadas" e outras forças de segurança "iniciariam terrível e sanguinária caçada aos líderes do movimento". "Casas, pequenas propriedades e matas da região foram vasculhadas para encontrar as armas dos revoltosos. As torturas, assassinatos e desaparecimentos de cidadãos envolvidos diretamente com os fatos ou não, foram constantes", declarou Lira.

Segundo Severina, seu marido desapareceu numa terça-feira de abril de 1964. "Naquele dia seu marido saiu desorientado de casa, pois ouviu comentários da vizinhança que a polícia estava à sua procura, e que iria encontrá-lo mesmo que fosse debaixo da cama", disse a viúva ao Judiciário, em 2005.

No domingo seguinte, o corpo de Albertino foi encontrado numa região de mata perto do engenho São José. Avisado da notícia, Sebastião Pereira foi ao local e contou que reconheceu o corpo como sendo do seu amigo pela roupa que vestia e por uma sobrecapa de cangalha (artefato usado no lombo de animais para transporte de coisas) de Albertino, achada ao lado do corpo.

Depois de cinco dias, durante os quais Sebastião ficou zelando pelo corpo, a polícia enfim chegou para resgatá-lo, mas já estava em decomposição. Sebastião disse que estava irreconhecível, com partes se soltando, que foi colocado numa mala e, dali, levado para a cidade de Santo Antão. Nunca mais a família soube o paradeiro do corpo nem onde ele foi enterrado.

Nome trocado

Não há dúvida de que um Albertino foi achado morto numa mata do engenho São José em abril de 1964, pois a comissão de mortos e desaparecidos de Pernambuco localizou o laudo necroscópico datado de 15 de abril de 1964 que confirma a morte e o achado do cadáver. O laudo diz que a causa da morte foi "indeterminada" e que o exame no corpo foi realizado no cemitério de Vitória de Santo Antão a pedido do "major delegado especial Rômulo Pereira de Morais".

É nesse momento que começa uma grande confusão com o nome de Albertino que durou décadas. Na guia do exame, o corpo aparece como sendo de "Albertino José da Silva" e não o correto, José de Farias. O nome errado vai parar na imprensa de Pernambuco e no "Correio da Manhã" do Rio de Janeiro que noticiou, em 24 de abril: "Morto o líder camponês". A curta nota diz que o corpo do "ex-presidente das Ligas Camponesas" em Vitória de Santo Antão, "palco de muitas agitações", fora achado "em estado de putrefação e estragado pelos urubus".

Ao mesmo tempo, a ditadura espalhou que Albertino teria se matado, uma versão sem qualquer comprovação e refutada pela família.

O equívoco sobre o nome acabou repetido em relatórios e livros editados posteriormente. Um terceiro nome também aparece nas publicações, "Albertino José de Oliveira". Depois que a família pleiteou, em 2002, o reconhecimento de Albertino como vítima da ditadura, a questão dos nomes também foi levantada pela conselheira Maria Eliane Menezes de Faria para indeferir o pedido. Ela havia pedido mais diligências, em 2004, mas não considerou os resultados satisfatórios.

"Concluo não serem satisfatórias as provas de que Albertino José de Farias é o mesmo Albertino José de Oliveira e, por essa razão, me sinto absolutamente segura de votar pelo indeferimento do presente pleito", escreveu a conselheira, em 2004, já durante o primeiro mandato de Lula.

O advogado da família, Waldomiro Batista, disse que não era incomum esse tipo de erro em listas de vítimas do regime militar, citando pelo menos quatro casos.

"Os equívocos cometidos pelas entidades de direitos humanos durante anos, durante a caminhada pela reparação aos seus familiares, foram fruto da falta de condições humanas, materiais e principalmente da intenção dos defensores da ditadura militar em não passar a limpo a história recente do Brasil", escreveu o advogado, em 2004, à CEMDP.

Um especialista sobre o tema da repressão durante a ditadura contra os movimentos de trabalhadores rurais, Gilney Viana, ex-preso político, ex-deputado federal pelo PT de Mato Grosso e ex-coordenador do Projeto Memória e Verdade da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, confirmou que houve uma confusão no nome de Albertino e que a CNV (Comissão Nacional da Verdade), em seu relatório final em 2014, corrigiu o problema.

"Não há dúvida de que o Albertino achado morto é o Albertino José de Farias das Ligas Camponesas. A comissão [CEMDP] nessa época, no começo, ela corria para dar conta dos processos mas não fazia uma apuração. Ela pedia informação e às vezes não vinha, ela não tinha condição de confirmar. Nesse caso a CNV estava certa. Albertino era o grande líder de massas dos camponeses lá de Vitória de Santo Antão. Na verdade essa atual comissão está fazendo um julgamento ideológico. Tudo que é camponês, de esquerda, e principalmente que não seja caracterizado como uma elite da esquerda partidária, não consegue. Tem aí um preconceito ideológico e de classe. [O camponês] é excluído e querem excluir mais ainda."

Semeão, um dos filhos de Albertino, disse que sua mãe conseguiu obter uma indenização por uma outra comissão do governo, a da Anistia, num valor único de R$ 100 mil, mas nesse caso pela perseguição que ela própria sofreu. E que nesse processo foi de novo confirmada a identidade de seu pai como o líder camponês achado morto em abril de 1964.

"Quando houve o falecimento, sumiram com o corpo, ninguém sabe se foi de propósito. A gente conseguiu depois, mandamos cartas para a Comissão da Anistia, provar que o nome real era Farias. Os moradores mais antigos do engenho comentavam a situação dele, que levaram o corpo para a cidade e depois a família não teve mais notícia. Aqui todo mundo sabe o que aconteceu."

'Pessoas que se julgam atingidas'

Ao apresentar seu voto pelo indeferimento do reconhecimento de Albertino, revogando o entendimento anterior da CEMDP, o presidente da comissão, Marco Vinicius Pereira de Carvalho provocou a reação de outra conselheira, Diva Soares Santana, em sessão virtual do dia 23 de junho último.

Em seu voto, Carvalho escreveu: "Tudo isso foi dito para que possamos entender que a função de cada um dos Conselheiros, para além do olhar humanitário e sensível às dores das pessoas que se julgam atingidas por atos praticados pelo Estado durante um período em que, de um lado as Forças Armadas, conclamadas pela população para defenderem o Brasil de um possível domínio de ditadores ligados à esquerda mundial e, por outro lado, os cidadãos cooptados por esta mesma esquerda a implantarem seu regime, não se pode falar em vencedores e vencidos".

Na sessão virtual da CEMDP, Diva disse que se sentiu ofendida pelo texto. "Não me julgo atingida; eu e minha família fomos (de fato) atingidas, bem como tantos outros familiares; que a 'ditadura' [as aspas são da ata lavrada pela CEMDP] assassinou pessoas; que minha irmã foi metralhada de joelhos, e seu corpo está desaparecido até os dias atuais; que os militares não falaram para minha família o que fizeram com ela", diz a ata da reunião.

Carvalho então "pediu desculpas publicamente e esclareceu que, de forma alguma, tivera a intenção de ofender a [sic] qualquer familiar". Diva retomou a palavra e, além de não aceitar o pedido de desculpas, disse que "anteriormente, os conselheiros escolhiam os relatores de cada caso e que, agora, somente o presidente decidia os relatores". Apenas a conselheira Vera Paiva acompanhou o voto de Diva pelo reconhecimento de Albertino.

Carvalho afirmou que "os últimos processos deliberados pela comissão estavam parados há muito tempo sem que nenhum conselheiro houvesse manifestado interesse em relatá-los, razão pela qual decidiu proferir os votos de relatoria para permitir que os processos seguissem seu curso". Diva disse que era contrária "a tudo que estava sendo colocado".

'Revitimização contínua'

Ao indeferir o reconhecimento de Albertino como vítima da ditadura, Carvalho citou os seguintes argumentos: o requerimento já ter sido "indeferido três vezes", o "indevido deferimento" do pedido, em 2018, ter ocorrido "mais de dez anos do último indeferimento sem pendência de análise de recurso", a "necessidade de observância do princípio da legalidade", o argumento de que o relatório da CNV "não supera os prazos estabelecidos pela lei" e suposta ilegalidade no "novo requerimento instaurado de ofício pela ex-presidente da CEMDP".

Carvalho também citou um parecer da Consultoria Jurídica junto ao ministério, da AGU (Advocacia Geral da União), segundo o qual a CEMDP não pode automaticamente utilizar as conclusões da CNV para o reconhecimento de vítimas da ditadura. O presidente da comissão disse ainda que os autores da nota técnica da CEMDP que definiram, em 2018, o reconhecimento de Albertino "resolveram ignorar o entendimento jurídico firmado pela Conjur, desafiando as normas postas para aprovarem o prejuízo ao Erário".

"Como se vê, todo e qualquer procedimento instaurado de ofício na CEMDP, que tenha por base os relatórios da Comissão Nacional da Verdade, além de serem intempestivos, sofrem do vício da ilegitimidade, pois não foram impulsionados pelos legitimados pela Lei nº 9.140/95", disse Carvalho.

Eugênia Gonzaga disse à coluna que a decisão da CEMDP é soberana e deveria ter sido cumprida, com o pagamento à família Farias, e refutou qualquer ilegalidade ou irregularidade no processo. "A comissão concluiu pelo reconhecimento e caberia ao Estado cumprir a lei. É uma revitimização contínua dessa família, a cada espera, a cada não."