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Rubens Valente

A luta judicial de indígenas e MPF para responder discursos de Bolsonaro

Indígenas waimiris-atroaris que participaram de fiscalização contra invasões que ameaçam índios isolados na Amazônia - ACWA (Associação Comunidade Waimiri-Atroari)
Indígenas waimiris-atroaris que participaram de fiscalização contra invasões que ameaçam índios isolados na Amazônia Imagem: ACWA (Associação Comunidade Waimiri-Atroari)

Colunista do UOL

10/11/2020 14h56

Resumo da notícia

  • Desde março o MPF tenta obter, em nome dos índios waimiris-atroaris, um direito de resposta inédito nas redes sociais de Bolsonaro e de ministérios
  • Após uma liminar favorável aos indígenas, a juíza federal de Manaus e o TRF em Brasília acolheram os argumentos da defesa do governo Bolsonaro
  • Em apelação, procurador da República afirma que liberdade de expressão tem limites e que "discurso de ódio" merece atenção especial

Os waimiris-atroaris da terra indígena homônima, localizada entre os estados do Amazonas e de Roraima, lutam há oito meses no Judiciário, por meio do MPF (Ministério Público Federal), para conseguir um direito de resposta aos discursos feitos pelo presidente Jair Bolsonaro com críticas, ataques às lideranças e insinuações sobre a etnia e os indígenas brasileiros.

Houve uma decisão favorável e duas contrárias. A mesma juíza federal de primeira instância que havia decidido a favor do pleito do MPF de maneira liminar, Raffaela Cassia de Sousa, sentenciou de forma contrária meses depois, em 9 de outubro último. Na semana passada, o MPF ajuizou uma apelação para tentar reformar a sentença no TRF (Tribunal Regional Federal) da 1ª Região.

A batalha processual começou em março deste ano, quando o MPF pediu, com uma ação civil pública, a publicação de uma carta eletrônica redigida pelo povo waimiri-atroari nos endereços eletrônicos do Palácio do Planalto e ministérios, "com destaque na página inicial, por um ano"; a publicação, no perfil de Jair Bolsonaro no Twitter, de uma thread (sequência de tuítes) "com a íntegra da manifestação indígena, que deverá ser mantida como tuíte fixado no perfil pelo prazo de um ano"; e a garantia de participação das lideranças waimiris-atroaris em três lives presidenciais seguidas, "mediante a inserção de vídeos que correspondam a um quarto do tempo de cada live".

O MPF pediu ainda que o governo fosse ordenado a elaborar "um plano de combate ao discurso de ódio contra os povos indígenas no âmbito do Estado e da sociedade brasileira, com indicação de cronograma de reuniões com o movimento indígena e entidades indígenas". Solicitou ainda que, ao final do julgamento da ação civil pública, fosse declarada a responsabilidade civil da União e da Funai "pela omissão e pelos discursos de ódio aqui relatados". A condenação incluiria a confecção de uma cartilha com a história do povo waimiri-atroari, com número mínimo de 30 páginas, para ser distribuída à rede pública com não menos que 50 mil exemplares.

MPF fez histórico de acusações de Bolsonaro sobre indígenas e ONGs

Na ação civil pública ajuizada em março deste ano, o MPF fez um histórico das declarações de Bolsonaro e de seus ministros prejudiciais aos indígenas. Declarações dadas no passado, quando Bolsonaro era deputado federal, voltaram a circular nas redes sociais a partir da campanha de 2018. Em 12 de abril de 1998, por exemplo, Bolsonaro declarou: "Pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente quanto a americana, que exterminou os índios".

Em novembro de 2015, Bolsonaro disse: "Estamos perdendo toda a região Norte por pessoas que não querem se inteirar do risco que estamos tendo de ter presidentes índios com borduna nas mãos". Em abril do mesmo ano, já havia dito que "não entro nessa balela de defender terra para índio".

Em janeiro de 2019, logo após a posse na Presidência, Bolsonaro escreveu no Twitter: "Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONGs. Vamos juntos integrar estes cidadãos e valorizar a todos os brasileiros".

Em julho de 2019, em um café da manhã no Planalto, Bolsonaro atacou de novo a demarcação de terras indígenas sob o argumento de que "dificultavam cada vez mais o nosso progresso aqui no Brasil" e também desqualificou o cacique kayapó Raoni ao dizer que "não reconheço o Raoni como autoridade aqui no Brasil, ele é um cidadão como outro qualquer".

No mesmo mês, durante uma reunião do Conselho de Administração da Suframa, em Manaus (AM), Bolsonaro acusou suposta "indústria das demarcação de terras indígenas", que estaria ocorrendo numa região "das mais ricas do mundo". Disse que "pessoas" querem "fazer com que o índio, nosso irmão, fosse tornado recluso nessas grandes áreas, como se fosse um ser humano pré-histórico". Afirmou que "nós queremos integrar o índio à sociedade e queremos fazer o casamento do meio ambiente com o progresso".

No discurso de abertura da Assembleia das Nações Unidas, em Nova York, Bolsonaro novamente investiu contra Raoni, ao dizer que ele, como outros líderes, "são usados como peça de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia". Disse que "algumas pessoas, dentro e fora do Brasil", apoiadas por ONGs, "teimam em tratar e manter nossos índios como verdadeiros homens das cavernas".

Houve uma série de declarações de Bolsonaro sobre suposta vontade de os indígenas "se integrarem à sociedade". Na live presidencial de 24 de janeiro de 2020, Bolsonaro disse que "o índio mudou, está cada vez mais um ser humano igual a nós".

Bolsonaro culpou índios e MP por atraso em obra, dizem procuradores

Ao longo de 2019 e 2020, Bolsonaro diversas vezes disse que a obra do linhão de transmissão de energia elétrica cruzaria a Terra Indígena Waimiri-Atroari, entre Manaus (AM) e Boa Vista (RR), independentemente da opinião e da consulta aos indígenas, o que, segundo o MPF, contraria a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), da qual o Brasil é signatário. Numa entrevista à Rede Bandeirantes de Televisão em 30 de abril, disse que o linhão "independe da manifestação por parte dos índios".

Em 16 de janeiro de 2020, ao falar com jornalistas na frente do Palácio da Alvorada, Bolsonaro afirmou, segundo a agência Reuters, a respeito do linhão: "A gente não consegue fazer o Linhão de Tucuruí, não consegue fazer porque [há] achaque de ONG, índio que quer dinheiro, tudo contra e está lá o povo de Roraima sofrendo".

Na mesma época, contudo, a própria Funai (Fundação Nacional do Índio) havia esclarecido que as tratativas com os indígenas estavam bem avançadas e não eram um impeditivo à obra. No dia 6 de fevereiro, a Funai divulgou um texto no site do órgão para esclarecer que as negociações caminhavam normalmente.

Ao tratar, em 8 de agosto de 2019, da indicação de um nome ao cargo de procurador-geral da República, Bolsonaro culpou o Ministério Público por um suposto atraso da obra e repetiu que os indígenas querem "ser como nós somos".

"O Brasil está há seis anos tentando fazer o linhão de Manaus a Boa Vista. Em grande parte, problema ambiental. Que não atrapalha a questão de minorias. Acabaram de ver índios aqui querendo progredir, querendo o progresso, querendo ser como nós somos. E tendo em vista que são enquadrados nas minorias, o MP, eu sei que tem suas Câmaras etc, muita independência também lá, mas a gente conta que esse futuro chefe do MP trabalhe nesse sentido junto a seus pares, evitar essa forma xiita de tratar as minorias."

Deputado serrou correntes em terra indígena e gravou vídeo para Bolsonaro

Segundo o MPF, os discursos de ódio já tiveram resultado prático na Terra Indígena Waimiri-Atroari. Em 28 de fevereiro de 2020, o deputado estadual Jeferson Alves (PTB-RR) pegou uma motosserra e, "com apoio de assessores e auxiliares, destruiu as correntes que controlam o acesso" à terra indígena na rodovia BR-174. O parlamentar registrou tudo em vídeo, que foi disseminado nas redes sociais. Na gravação, ele dirigiu uma mensagem a Bolsonaro.

"Essas correntes, se depender de mim, nunca mais vai (sic) deixar o meu estado isolado. Presidente Bolsonaro, é por Roraima, é pelo Brasil. Não a favor dessas ONGs que maltratam meu estado", disse o deputado.

O uso das correntes e postos de controle do tráfego de veículos durante a noite na BR - evitando morte de animais, atropelamento de pedestres e facilidades para invasão do território indígena, com caça noturna e desmatamento - foi iniciado pelo próprio Exército, responsável pela construção da rodovia, ainda nos anos 70. Uma ação judicial debate o uso das correntes há 16 anos e nunca houve ordem judicial para a retirada.

Em março deste ano, em liminar, a juíza federal Raffaela Sousa acolheu o pedido do MPF e determinou o direito de resposta na forma solicitada pelos oito procuradores da República que subscreveram a ação civil pública. Ela ordenou ainda que a União e a Funai indicassem às autoridades públicas, nos termos da convenção contra todas as formas de discriminação racial da ONU (Organização das Nações Unidas), "que não incitem ou encorajem a discriminação racial".

A orientação deveria ocorrer "por meio de circular e manifestação pública dos ministérios e Presidência da República, no prazo de 20 dias". Por fim, a juíza mandou que União e Funai elaborassem um plano de combate ao discurso de ódio contra povos indígenas, além da "indicação de cronograma de reuniões com o movimento indígena e entidades indigenistas, a ser apresentado no prazo de 60 dias".

Governo disse que decisão da juíza "reconheceu que não há omissão"

O governo Bolsonaro recorreu, por meio da AGU (Advocacia Geral da União), e obteve a suspensão dos efeitos da liminar em decisão do TRF da 1ª Região. Em 9 de outubro, a juíza federal sentenciou para cassar sua própria liminar e, no mérito, decidir pelo arquivamento da ação.

Na decisão, a juíza mencionou quatro pontos: que "não é possível falar em situação de ofensa específica aos povos Waimiri-Atroari"; que a retirada da corrente da BR-174 é tratada por magistrado em outro processo; que "não restou identificada a omissão ou conduta relatada pelo MPF" sobre desrespeito aos povos indígenas por "determinados órgãos governamentais"; e que "não se verifica necessidade de intervenção judicial", pois, aqui citando um voto do ministro do STF Luiz Fux, "a liberdade de expressão" poderia sofrer limitações" desde que sejam "razoáveis, proporcionar e visem a prestigiar outros direitos e garantias do mesmo status junfundamental".

O governo Bolsonaro comemorou a decisão da juíza. A Funai divulgou um texto à imprensa com declaração da procuradora-chefe da Procuradoria Federal, órgão que representa a fundação no processo, vinculado à AGU (Advocacia Geral da União), no Amazonas, em substituição, Helena Marie Fish Galiano.

"A Procuradoria Federal no Estado do Amazonas, representante judicial da Funai, além de afastar as alegações de omissões no trato da questão indígena e o possível fomento a um discurso de discriminação racial contra os povos indígenas, assegurou que a formulação e a execução de políticas públicas é atribuição do Poder Executivo e, portanto, que cabe à Funai, a partir de seus recursos orçamentários e humanos, traçar as medidas mais eficazes e úteis à sociedade indígena, no intuito de alcançar e beneficiar o maior número de comunidades e não somente a um grupo determinado."

'Discurso de ódio merece especial atenção', aponta procurador

Na semana passada, na apelação à sentença, o MPF solicitou ao TRF um "acórdão que garanta a concessão de provimento jurisdicional que declare a omissão do Estado brasileiro na condução da política indigenista e a violação de direitos fundamentais dos povos indígenas, notadamente do povo Waimiri-Atroari, em razão do fomento ao discurso de ódio e da defesa de um projeto integracionista em relação a este e aos demais povos indígenas, deixando a União e a FUNAI de cumprirem o seu dever de proteção e colocando em risco a integridade dos grupos étnicos e a estabilidade de seus territórios".

O procurador da República Fernando Merloto Soave pontuou que "a liberdade de expressão não é absoluta" e que "isso se coloca ainda mais em evidência quando estão em jogo direitos que buscam sua fundamentação diretamente no princípio da dignidade da pessoa humana".

"Nesse contexto, o chamado discurso de ódio ('hate speech') merece especial atenção. Embora não exista uma definição jurídica internacional para a expressão, ela é entendida como "qualquer comunicação em discurso, escrita ou comportamento que ataque ou use linguagem discriminatória ou pejorativa em relação a pessoa ou grupo com base no que elas são, ou seja, na sua religião, etnicidade, nacionalidade, cor, descendência, gênero ou outro fator de identidade". Enfrentar o discurso de ódio passa a ser uma tarefa fundamental, sobretudo para evitar que ele seja um passo para algo mais perigoso, como a incitação à discriminação, à hostilidade e à violência.

O procurador ressaltou que "as medidas pleiteadas não contrariam a lógica da democracia deliberativa. Ao contrário, o objetivo da ação é justamente garantir a pluralização do debate e permitir que todos os pontos de vista sejam considerados, como também destacou o juízo de 1º grau ao analisar a tutela de urgência".

"Em outras palavras, a presente demanda não pretende proibir as falas do presidente da República, e sim que elas não circulem sem o necessário contraponto e a manifestação dos indígenas. O cenário de ilicitudes praticadas leva a essa necessidade. Assim, busca-se garantir que os povos indígenas que sofreram tais violações - no caso, os Waimiri-Atroari - apresentem suas versões dos fatos, em todos os canais disponíveis, de maneira a garantir um debate honesto e plural."

A apelação do MPF, ajuizada na primeira instância, receberá as contrarrazões das partes e depois seguirá para apreciação do TRF-1.