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Rubens Valente

Decreto de Bolsonaro criou um vácuo na transparência, dizem especialistas

07 out. 2020 - Jair Bolsonaro (sem partido) e Paulo Guedes durante o lançamento do programa Voo Simples - Mateus Bonomi/AGIF - Agência de Fotografia/Estadão Conteúdo
07 out. 2020 - Jair Bolsonaro (sem partido) e Paulo Guedes durante o lançamento do programa Voo Simples Imagem: Mateus Bonomi/AGIF - Agência de Fotografia/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

12/11/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Assinado por Bolsonaro, Paulo Guedes (Economia) e Wagner Rosário (GGU) em 5 de novembro, decreto estabeleceu "um padrão mínimo" para sistema
  • O decreto revogou um anterior, ligado à "Lei Capiberibe", que estabeleceu a transparência ativa, na internet, de receitas e despesas de entes públicos
  • Para especialistas, o novo decreto criou "um vácuo legal" de mais de dois anos, pois só deverá valer a partir de janeiro de 2023
  • Ministério da Economia diz que prazo de dois anos "não significa que os entes estão desobrigados de cumprir a Lei"

Um decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro no último dia 5 criou um vácuo legal que, na prática, suspende por dois anos, até janeiro de 2023, o cumprimento da lei de transparência ativa nos entes públicos, incluindo municípios, estados e União. É o que apontam especialistas consultados pelo UOL.

Conhecida como "Lei Capiberibe" ou "Lei da Transparência" e aprovada em 2009, a Lei Complementar 131 foi uma emenda a um dos artigos da LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) e obrigou os entes públicos a divulgarem em tempo real, na internet, dados pormenorizados sobre despesas e receitas.

Nos últimos dez anos, os entes públicos tiveram que se adequar à lei, sob pena de virarem alvo de denúncia, por qualquer cidadão, no Ministério Público e nos Tribunais de Contas. A LC 131 foi seguida por um decreto, o de número 7.185/2010, assinado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tratou de um padrão mínimo no sistema de informação nos termos do artigo 48 da LRF, que havia sido alterado pela "Lei Capiberibe". Foi o decreto de 2010 que Bolsonaro revogou na semana passada.

O novo decreto, de número 10.540/2020, foi também assinado pelos ministros Paulo Guedes (Economia) e Wagner Rosário (CGU). Ele pretende estabelecer um "padrão mínimo de qualidade do Sistema Único e Integrado de Execução Orçamentária, Administração Financeira e Controle".

O principal problema, segundo os especialistas, reside no artigo 18, que diz: "Os entes federativos deverão observar as disposições deste Decreto a partir de 1º de janeiro de 2023". Assim, no entender dos especialistas, desde a publicação e até depois da campanha eleitoral de 2022, todos os entes ficam desobrigados de adotar sistemas de transparência ativa na internet e, ao mesmo tempo, não podem ser punidos por eventual descumprimento.

O decreto também diz que os entes públicos precisam apresentar um plano em até 180 dias mas, para os especialistas, isso não muda a suspensão de dois anos.

O ex-senador João Capiberibe (PSB-AP), que dá nome à Lei Complementar de 2009, disse que "se trata de um decreto autoritário que agride a função do Parlamento", já que a LC 131 foi aprovada pelo Congresso Nacional. "Esse decreto na prática suspende a eficácia da lei. O nosso partido [PSB] vai ao Supremo Tribunal Federal contra ele", disse Capiberibe, atual candidato a prefeito de Macapá (AP).

Entes públicos podem optar por dados gerais, adverte especialista

Fabiano Angélico, pesquisador e consultor para temas de accountability social, transparência e integridade, especialista no tema do acesso à informação, disse que a iniciativa do governo de atualizar o decreto de 2010 é válida do "ponto de vista tecnológico, técnico", mas a execução, com o texto do decreto, "foi muito ruim".

Ele vê "dois absurdos" no decreto. O primeiro é a ausência de qualquer citação à LAI (Lei de Acesso à Informação), de 2012. O outro é o prazo, conhecido pela expressão latina "vacatio legis", elástico dado entre a publicação do decreto e a data da sua entrada em vigor.

"O segundo absurdo é você dar dois anos de 'vacatio legis' . A LAI deu seis meses. É lógico que é preciso de um tempo para o Estado se organizar, mas também não pode ser um tempo tão excessivo. Era também preciso ter deixado claro que esse prazo não significa que aquilo que já estava no decreto [revogado] precisava ser jogado fora. Poderiam ter organizado melhor o texto do decreto para dizer 'olha, sobre tais e tais padronizações e ferramentas, os entes federativos têm até 2023 para fazer'. Isso deixaria claro que o decreto de 2010 ainda estaria valendo", disse Angélico.

"Se eu sou um prefeito do interior, [a partir do novo decreto] posso dizer que estou colocando no Facebook alguns números gerais e estou cumprindo a lei. 'Eu tive que retirar o sistema porque o novo decreto pede um monte de mudança e estou divulgando aqui uns números mais gerais de lei orçamentária nas redes sociais'. Ou ele pode dizer que os dados estão disponibilizados às pessoas que se dirigirem à Prefeitura", advertiu Angélico.

Os advogados Rafael Carneiro e Felipe Corrêa, do escritório Carneiros Advogados, contratado pelo PSB Nacional, analisaram o decreto e disseram que vão ao STF (Supremo Tribunal Federal) para pedir sua anulação, possivelmente por meio de uma ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental).

"É um tremendo retrocesso na transparência, por dois anos. Porque deixa de regulamentar uma lei. É um vácuo normativo durante dois anos. Se não há sanção por dois anos, é um convite ao descumprimento", disse Rafael Carneiro.

Economia diz que "não significa que os entes estão desobrigados de cumprir a Lei"

Procurado pelo UOL, o ME (Ministério da Economia) informou, por meio de sua assessoria, que o novo decreto foi necessário "devido às evoluções tecnológicas que ocorreram desde 2010, para eliminar pontos que causavam dúvidas e para abranger uma alteração que foi inserida na LRF por meio da Lei Complementar 156, de 28 de dezembro de 2016".

A mudança citada da LRF é o parágrafo 6º do artigo 48, que fala em adoção de "sistemas únicos de execução orçamentária e financeira, mantidos e gerenciados pelo Poder Executivo, resguardada a autonomia". O ministério disse ainda que o texto foi "uma construção conjunta com vários representantes da Federação" que partiu de um "texto inicial" produzido pelo Tesouro Nacional.

Como exemplos das discussões, o ME citou a Câmara Técnica de Normas Contábeis e de Demonstrativos Fiscais da Federação e "reuniões do Grupo de Trabalho nº 3 do Acordo de Cooperação Técnica celebrado entre o Tesouro Nacional, a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) e o Instituto Rui Barbosa (IRB)".

Indagado sobre a vacância da lei por mais de dois anos, de novembro 2020 a janeiro de 2023, o ME afirmou: "Conforme previsto em seu art. 20, o Decreto 10.540/2020 entrou em vigor na data de sua publicação. No entanto, como algumas alterações previstas no Decreto, em especial a alteração prevista no parágrafo 6º do art. 48 da LRF, dependem de todo um processo, como aprovação em lei orçamentária anual, licitações e implementação de sistemas, o art. 18 trouxe um direcionamento com o objetivo de que a aplicação das penalidades, nos casos de descumprimento das disposições do Decreto, ocorressem apenas a partir de 2023. No entanto, isso não significa que os entes estão desobrigados de cumprir a Lei. Adicionalmente, o parágrafo único do art. 18 dispõe sobre a necessidade da criação de um plano de ação para implementar as alterações previstas no Decreto".

A respeito da ausência de citações à LAI, o ME afirmou que o "não se propõe a alterar regras de transparência". "Este decreto visa regulamentar parâmetros mínimos que os sistemas devem seguir para atender aos diversos objetivos. Naturalmente, um dos objetivos é a transparência. Ou seja, o novo Decreto não altera regras de transparência, ele cria mecanismos que permitam aos entes promover a transparência, levando em consideração os parâmetros trazidos recentemente pela LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados]."

Procurada para comentar o assunto, a CGU primeiramente informou: "Após consulta às áreas técnicas, sugerimos que você solicite os esclarecimentos ao ministério da Economia, pois a Secretaria do Tesouro Nacional foi a responsável direta pela elaboração do decreto".

Indagada então por que o ministro assinou o decreto, se o responsável foi a Economia, a CGU afirmou: "Trata-se de procedimento rotineiro na elaboração de atos normativos e que se encontra regulamentado pelo Decreto nº 9.191/2017. No caso específico, o Ministério da Economia - autor da proposta - encaminhou a proposta para referendo ministerial da CGU porque o (1) o decreto que seria revogado (Decreto 7.185/2010) contava com a assinatura da CGU na condição de coautora, (2) a matéria continuaria a ser tratada no novo decreto e (3) o objeto do decreto tangencia algumas áreas de competências da CGU".