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Rubens Valente

REPORTAGEM

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Biólogo 'cloroquiner' diz que grupo ajuda senadores da CPI 'nos bastidores'

O biólogo Marcelo Hermes Lima (à esq., de paletó aberto) ao lado do presidente Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto  - Reprodução/Facebook
O biólogo Marcelo Hermes Lima (à esq., de paletó aberto) ao lado do presidente Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto Imagem: Reprodução/Facebook

Colunista do UOL

10/05/2021 04h00Atualizada em 10/05/2021 14h35

O biólogo de Brasília Marcelo Hermes Lima afirmou à coluna que ele e um grupo de membros de uma associação denominada "Docentes Pela Liberdade", da qual é fundador e "diretor de relações institucionais", têm ajudado senadores "nos bastidores" da CPI da Pandemia.

Lima foi recebido no Palácio do Planalto em novembro de 2019 pelo presidente Jair Bolsonaro, a quem já chamou de "um dos maiores heróis do mundo ocidental e cristão", e diz ser fã do ex-presidente dos EUA Donald Trump. Num texto jocoso na internet, já pediu para ser chamado de "Capitão Cloroquina". A associação DPL cita, em seu site na internet, como um dos seus interesses "romper com a hegemonia da esquerda".

O biólogo argumentou, em entrevista à coluna por telefone na sexta-feira (7), que na associação há cerca de "20 cientistas" no tema da covid-19. Eles seriam os responsáveis por produzir as informações que estariam sendo repassadas a membros da CPI, cujos nomes Lima disse que não revelará.

"A gente ajuda, né, nos bastidores, com informações técnicas. É só isso. Não é nada demais, né. Só que a gente não pode revelar o que nós falamos, né. Nós ajudamos os senadores que acreditamos que estão do nosso lado, do lado do Brasil. Tem aqueles do lado vermelho e [aqueles] do lado verde e amarelo. Então nós ajudamos do lado verde e amarelo", disse Lima.

Indagado sobre como ocorre a transmissão da informação aos senadores, o biólogo disse que elas são enviadas "para pessoas que estão ajudando nos bastidores".

"É para eles [senadores] terem acesso à informação, né? É isso. Porque eles não são pessoas que têm conhecimento técnico ali na hora. Você tem que estudar, né? Nós estudamos isso, quer dizer, não eu, particularmente, mas pessoas que são especialistas, que estudam mesmo, cujo trabalho de vida é esse, está sendo a covid, né", disse o biólogo.

Perguntado se as informações estão sendo usadas pelos senadores, Lima disse que pelo menos uma ele percebeu que já foi usada. Também se recusou a dizer qual e por quem.

"Se eles [senadores] têm utilizado, aí também não posso falar. Nós informamos, né, nós passamos as informações. Se eles utilizam ou não, cabe a eles [decidir], né. Eu vi uma informação sendo utilizada, eu não posso dizer qual, né. [risos] Eu já vi uma informação sendo utilizada, é, já vi."

Lima disse que o grupo todo - registrado com número no CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) em novembro de 2019 e com sede em Brasília - tem cerca de "900" membros, incluindo "agrônomo, físico, advogado, professor de direito, militares de alta patente, tem muito, é um grupo diversificado. Militares da ativa e da reserva, Polícia Civil, Polícia Federal, tem de tudo. Bombeiro. Do Brasil inteiro e alguns que moram no exterior. Basicamente é um grupo de cientistas".

Em vídeo que falou da CPI, biólogo atacou isolamento social

No último dia 5, Lima também afirmou, em sua página no Facebook, que ele e seu grupo estavam "ajudando" a CPI. "Sobre o Docentes pela Liberdade (DPL) e a CPI da Covid. Estamos ajudando o Brasil nos bastidores da CPI", escreveu Lima.

Ele divulgou um vídeo, no qual afirmou: "Aqui o professor Marcelo Hermes, só para dizer que eu me sinto bastante honrado de poder estar ajudando ali na CPI da Covid. Passando informações técnicas, informações importantes sobre o que aconteceu no país nesse um ano. As canalhices feitas pela esquerda. E de mentiras, né, propagadas o mundo inteiro. Como por exemplo que o lockdown serve para conter a doença. Isso é uma mentira. Isolamento social causa mortes por Covid. Há publicações nesse sentido, publicações científicas inclusive uma delas por um professor do DPL", diz o professor no vídeo divulgado em sua página no Facebook.

O ataque ao lockdown e ao isolamento social contraria várias evidências científicas e artigos publicados desde o começo da pandemia. Um estudo realizado por cientistas do Imperial College de Londres indica que só os bloqueios realizados na Europa na primeira onda da Covid-19 podem ter poupado a vida de mais de 3 milhões de pessoas.

O biólogo Marcelo Hermes Lima em conversa com Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
O biólogo Marcelo Hermes Lima em conversa com Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto
Imagem: Reprodução/Facebook

Lima, que aparece no site da UnB (Universidade de Brasília) como professor da instituição, não indica formação em epidemiologia ou medicina em seu currículo na plataforma Lattes. As informações da plataforma são fornecidas pelos próprios acadêmicos. Lima afirma ter graduação em biologia pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), em 1986, e doutorado em ciências biológicas (biofísica) pela mesma instituição, em 1991. Afirma ainda ter "experiência na área de bioquímica e fisiologia comparada, com ênfase em Radicais Livres e Antioxidantes. Trabalha também com Pesquisa em Ensino de Bioquímica e Gestão de Ciência".

Em publicações e vídeos na internet, Lima aparece defendendo o uso de medicamentos como a cloroquina para suposto tratamento da covid-19 e novamente atacando lockdown e distanciamento social.

Desde o início da pandemia, no ano passado, estudos de diversas instituições apontam que a cloroquina é ineficaz no tratamento da covid e pode causar danos colaterais graves no paciente. Em março passado, um painel de especialistas da OMS (Organização Mundial de Saúde) "aconselhou fortemente" contra o uso da hidroxicloroquina para prevenção ou tratamento da covid-19. Concluiu que "não funciona para lidar com a covid-19 e toda a pesquisa sobre o remédio deve ser abandonada, com a suspensão de orçamento para qualquer estudo com o produto e o redirecionamento de recursos para outros setores".

Lima disse à coluna que tomou hidroxicloroquina em março do ano passado, quando foi contaminado pelo novo coronavírus. Ele disse que usou "o tratamento proibido pela imprensa", e riu.

Em 30 de janeiro, ele escreveu em sua rede social que "a imprensa lixo" estava dizendo que "a grande vilã do Brasil" seria Mayra Pinheiro, uma secretária do Ministério da Saúde que, por recomendar o uso da cloroquina, passou a ser chamada de "capitã Cloroquina". Lima escreveu: "Pois bem, podem me chamar também de Capitão Hermes Cloroquina! Tô me lixando pro que a imprensa pensa de mim!"

Lima escreveu, em julho de 2020: "Estou certo que 99% das 70 mil mortes por Covid-19 no Brasil teriam sido prevenidas pelo tratamento precoce (HCQ+Astro+ZN)!".

Desde o ano passado, estudos científicos apontam que pacientes tratados com hidroxicloroquina não apresentaram resultados melhores do que aqueles que não receberam o medicamento.

À coluna, o biólogo disse que já tem "7 mil citações" em publicações e que o trabalho da associação não é "nenhuma coisa negacionista". "Como eu te falei, eu tenho 7 mil citações. Se juntar essa galera que vocês da grande imprensa usa, e multiplicar por dez, não dá o que eu tenho de impacto."

Em um vídeo postado no Facebook no ano passado, Lima diz que isolamento social ou lockdown "causam mortes por Covid". "Isso não vai sair na imprensa. Se vocês acreditam no nosso movimento de cientistas, então é essa que é a verdade. Se você não acredita, prefere a Rede Globo, fique à vontade, é uma democracia. Uns sabem que um mais um é dois, outros acreditam que um mais um é três", disse Lima no vídeo.

Lockdown e isolamento social, entretanto, foram usados com sucesso por inúmeros países e até alguns municípios brasileiros. Em Araraquara (SP), os casos de covid-19 desabaram dois meses depois do lockdown decretado pelo prefeito Edinho Silva (PT).

Em outro vídeo, Lima dá risada ao fazer uma piada que teve como mote a doença. "Ei, pessoal, acabei de descobrir um método infalível pra não pegar Covid. É não respirar. Ó, tem mais de um minuto que estou sem respirar, testando esse método. Não pegarei Covid. Rarará."

Ao defender uma médica de Porto Seguro (BA) que recomendou o uso da cloroquina para pacientes com covid-19 mas foi criticada, Lima disse que seus "amigos cientistas" são "arrogantes ao extremo".

"Então assim, estou muito desgostoso, sabe, da comunidade científica, especialmente da comunidade científica médica. O nível de arrogância, né. A arrogância, se acham donos do saber. Então se o saber não tiver publicado numa [revista científica] 'Lancet', não vale nada. Eu vou dizer o que vocês são: vocês são uns canalhas, você são pessoas más. Quando vocês falecerem, vocês vão para o inferno, é isso que vai acontecer. Deus não vai acolher vocês."

Lima chamou Trump de "meu amado presidente" e Bolsonaro de "herói"

Em outras publicações, Lima aparece louvando o ex-presidente dos EUA, Donald Trump. Em 13 de novembro, publicou uma foto do norte-americano e escreveu: "Meu amado presidente!". Em 15 de abril, publicou duas fotografias, uma de sua mulher e outra de Bolsonaro. "Meus comandantes, na estante de casa! Aline: amor pra vida toda. Bolsonaro: um dos maiores heróis do mundo ocidental e cristão."

Em 1º de maio, Lima publicou uma foto sua usando uma camiseta da campanha eleitoral de Bolsonaro de 2018 e escreveu: "Eu autorizo, presidente". A frase, reproduzida na época nas redes dos militantes bolsonaristas, fazia referência a uma fala de Bolsonaro de abril, quando o presidente disse que aguardava "um sinal do povo" para agir, sem explicar qual ação seria essa.

O biólogo Marcelo Hermes Lima ( à esq.) ao lado do então chanceler, Ernesto Araújo, em foto, segundo Lima, de uma audiência concedida em 2019 no Itamaraty - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
O biólogo Marcelo Hermes Lima ( à esq.) ao lado do então chanceler, Ernesto Araújo, em foto, segundo Lima, de uma audiência concedida em 2019 no Itamaraty
Imagem: Reprodução/Facebook

Em 31 de março, depois da saída do ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo do cargo, Lima publicou uma foto dizendo que era uma recordação da visita que fez ao então chanceler em 2019. Ele chamou Araújo de "um grande humanista e patriota". No final de 2020, por outro lado, pediu pela internet a exoneração do ministro Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), sob a alegação de que ele "se aliou às alas esquerdistas das universidades". "Cansei de verdade desse sujeito!!! Presidente Bolsonaro, esse senhor precisa ser demitido", escreveu. Como se sabe, o conselho de Lima não foi atendido.

Conselho Regional diz que Lima não é biólogo

Em nota pública divulgada nesta segunda-feira (10) após este texto ter ido ao ar, o Conselho Regional de Biologia da 4ª Região (CRBio-04) disse que Marcelo Lima "não possui registro profissional no Conselho, razão pela qual a identificação como biólogo no texto é equivocada". Segundo o Conselho, a lei 6684/79 "determina que o exercício da profissão de biólogo é privativa aos graduados em Ciências Biológicas/Biologia devidamente registrados no Conselho Regional de Biologia com jurisdição sobre o local em que atuarem". O CRBio-04 tem jurisdição sobre o Distrito Federal, além de Minas Gerais, Goiás e Tocantins.

O colunista utilizou o termo biólogo tal como é previsto em todos os dicionários da Língua Portuguesa como o indivíduo que se especializou em biologia. Conforme descrito no texto, Marcelo Lima é graduado, mestre e doutor em ciências biológicas. Ele também é professor na UnB, segundo o site oficial da instituição. O texto não tratou dos aspectos legais do exercício da profissão de biólogo, regulado pela lei citada pelo Conselho.